A Estátua do Sonho de Nabucodonosor

Em Daniel 2 lemos o relato de que Nabucodonosor teve um sonho, mas por alguma razão não se lembrava de seu sonho. Ele parecia saber que se tratava de uma mensagem profética, então ordenou que os seus sábios dissessem o que ele havia sonhado e ainda dessem a interpretação. Ninguém pôde ajudá-lo e isso enfureceu a ponto de ordenar que os seus sábios fossem mortos. Então, Daniel, quando soube da chacina iminente, da qual ele mesmo seria vítima, se apresentou ante o rei e pediu-lhe tempo para interpretar. A ousadia deu certo, e Deus lhe revelou o que o rei havia sonhado, assim como o entendimento para interpretar. O rei viu uma estátua com cabeça de ouro, peito e braços de prata, barriga e coxas de bronze, canelas de ferro, pés e artelhos de ferro, barro de cerâmica e de lodo. Nesse artigo, faremos algumas considerações sobre a visão dessa estátua de forma a pavimentar o entendimento sobre qual seria o sentido do ferro e do barro, que são as partes mais discutidas dessa visão.

1. Considerações sobre a estátua

As fronteiras entre história e eventos escatológicos são fluidas no livro de Daniel. Por trás de cada narrativa e das visões, sempre enxergamos nuances da era escatológica. Nesse sentido, a estátua contemplada em visão por Nabucodonosor e a interpretação dada por Daniel (Dn. 2) têm um efeito de sentido que transcende os meros fatos históricos. Neste tópico e nas seções seguintes, trataremos de alguns princípios interpretativos que impactarão toda a nossa abordagem. Vejamos alguns pontos:

1. Em 1.1 veremos que a visão descrita em Daniel 2 segue apenas parcialmente o fluxo da história. O que se faz ali é uma seleção de fragmentos da história para compor o quadro do tempo do fim. Dessa forma, cada parcela da estátua lança luz sobre a escatologia, o que confirma nossa hipótese de o hipertema do livro ser o tempo do fim (cf. artigo Daniel 11: uma solução proposta pela linguística textual Parte II). Ainda que, à primeira vista, pareça tratar de casos meramente históricos, veremos que, na verdade, são espelhos de eventos escatológicos.

2. Em 1.2 estudaremos que cada material da estátua (ouro, prata, cobre, metal e barro) não aponta exatamente a apenas um povo, ou seja, o mesmo material pode se referir a povos distintos.

3. Em 1.3 aprenderemos que a estátua tem duas divisões diferentes. A primeira delas é sinalizada pelo material (parte de ouro, de prata etc.) e a segunda, pelas divisões do corpo humano (cabeça, peito etc.). Isso nos sinaliza tanto impérios diferentes quanto fases distintas de um mesmo império.

Somente após acertadas essas premissas, poderemos avançar na identificação do povo do barro e do metal, nos artigos seguintes.

2. A estátua: profecia vs. História

A descrição da estátua vista por Nabucodonosor sugere-nos que cada parte do corpo é equivalente a um período da história e cada material é pertinente a um ou mais povos unidos sob um único império. Visualizemos isso numa tabela:

Partes da estátuaMatériaSignificadoPassagem
CabeçaOuroImpério BabilônicoDn. 2:37-38 (1o reino)
Peito e braçosPrataImpério Medo-PersaDn. 2:39 (2o reino)
Ventre e coxasBronzeImpério MacedônicoDn. 2:39 (3o reino)
Pernas de metalMetalImpério RomanoDn. 2:40 (4o reino)
PésMetal e barro???Dn. 2:41 (4o reino)
ArtelhosMetal e barro???Dn. 2:41-43 (4o reino)

Seja qual for o sentido atribuído ao metal e ao barro, percebemos claramente que a estátua não abarca todos os povos e impérios da história: chineses, russos, japoneses, por exemplo, foram deixados de lado. O livro de Daniel faz um recorte específico da história de forma a abarcar apenas os povos que estão diretamente relacionados à construção do tempo do fim e que tenham relevância para a história do povo de Deus. Seguindo um raciocínio semelhante, Nachmânides (Ramban) defende que os quatro reinos não abarcam toda a história, mas contêm, em forma de esboço, a história do exílio judeu[1]. De fato, todos os povos inclusos têm relação profunda com o povo de Israel: os babilônios e romanos exilaram os judeus e destruíram o templo, os persas tentaram liquidá-los por meio da trapaça de Haman (a história de Purim narrada no livro de Ester) e os gregos obrigaram-nos, em vão, a abandonar sua fé em Deus (a história de Chanukah, contada no livro de Macabeus e mencionada no Talmude). A interpretação de Ramban confirma que toda a Escritura visa, como um dos seus propósitos precípuos, orientar o povo de Deus para que não seja pego de surpresa pelas vicissitudes da história. Essa seria, portanto, uma explicação plausível para a exclusão de diversos outros povos.

Uma vez compreendido que o recorte histórico tem como critério a relação entre o povo judeu e os povos que os dominaram ou exilaram, avancemos para outro critério: os fatos profetizados como espelhos do tempo do fim. Se retomarmos a proposta sugerida na seção 1.5, o hipertema do livro é o tempo do fim e não uma aula de história da humanidade. Portanto, os povos excluídos não têm o mesmo peso que, por exemplo, os babilônios e os persas, seja na formação do tempo do fim, seja no impacto que tiveram sobre os judeus.

A relação entre os quatro reinos e o tempo do fim será mostrada gradativamente ao longo deste livro, mas vamos exemplificar resumidamente o caso dos babilônios. Não há dúvida da relevância histórica dos babilônios sobre os judeus, pois eles destruíram o Primeiro Templo e levaram os moradores da terra de Israel cativos. A dúvida pode surgir quanto à conexão entre essa história e a escatologia. Veremos em artigos futuros que o império da Babilônia, embora extinto há milênios, contribuirá para o tempo do fim por meio de sua filosofia e a própria visão da estátua nos confirma isso ao apontar o rei Nabucodonosor como a ‘cabeça de ouro’ sinalizando-nos que a mentalidade predominante na sociedade da era escatológica será, essencialmente, a mesma abraçada por Nabucodonosor. E em que exatamente esse rei acreditava? Isaías nos revela os pensamentos mais íntimos de Nabucodonosor (Is. 14:11-15): ele encarava a possibilidade real de estabelecer um domínio mundial, semelhantemente à forma como o Altíssimo domina sobre todas as coisas, e as descrições de Isaías acerca da soberba de Nabucodonosor são tão grandiloquentes que se confundem com as do próprio satanás. Nessa mesma esteira, quando Daniel descreve o nível de domínio de Nabucodonosor, usa a mesma grandiloquência do domínio de Adão no livro do Gênesis (compare Dn. 11:38 com Gn. 1:28-30), como se o rei caldeu exercesse a autoridade semelhante ao de um deus ou seu representante. Semelhantemente, o homem da iniquidade também se ostentará como o próprio Deus (II Ts. 2:4). Seguindo essa linha, concluímos que Nabucodonosor, o anticristo escatológico e satanás têm a mesma vontade e pensamento e são detentores, por conseguinte, do mesmo destino. E, assim, o livro de Daniel é escrito nesse jogo de vai e vem entre fatos históricos e eventos apocalípticos.

Em resumo, pelo exposto nesta seção, o objetivo da estátua não é traçar um curso linear da história, mas sim fragmentos dela, de forma que, ao juntarmos todos esses pedaços, possamos compreender plenamente a constituição do tempo do fim e tenhamos uma previsibilidade sobre os acontecimentos pertinentes ao exílio judeu.

2.1 Cada material é um povo?

A estátua é composta de cinco materiais: ouro, prata, cobre, ferro e barro. Vejamos cada um deles. A descrição da cabeça de ouro se reporta claramente aos babilônicos, ou, mais especificamente, ao próprio rei Nabucodonosor (Dn. 2:38). A prata é uma referência aos persas e aos medos, que formariam o próximo império: são dois povos, portanto, relacionados a um mesmo material. O bronze aponta para os gregos. A palavra hebraica para designá-los é ‘Javã’:  é o mesmo nome que aparece na genealogia de Gênesis 10:4, o qual, segundo a tradição, é o patriarca dos gregos. Apesar de o império fundado por Alexandre ser chamado de Macedônico, e não grego, não fazia diferença: os laços culturais os uniam. Portanto, apesar de os gregos serem, na verdade, povos com diferentes tribos originárias (dórios, aqueus, jônios e eólios), podem ser considerados como um mesmo povo; inclusive o termo ‘jônio’ é uma corruptela de ‘Javã’[2]. Nessa mesma linha, o Da’ath Sofrim defende que o reino da Grécia era essencialmente diferente do Babilônico e Persa, pois poderiam ser vistos como uma confederação de estados independentes cujo elemento unificador era a cultura grega[3]. Em suma, o bronze se refere a Javã, que abarca todas as tribos originárias da Grécia e os macedônios, ainda que os gregos em geral vivessem em estados independentes. Pelo exposto, aprendemos que cada material da estátua pode se referir também a mais de um povo – caso dos medos e dos persas –, bem como a diferentes tribos originárias que os constitui, por meio da cultura, em um único povo – caso dos gregos.

2.2 Cada parte do corpo é um império?

É comum depreendermos, da leitura de Daniel 2, que cada parte do corpo da estátua corresponde exatamente ao período integral de um mesmo império. No entanto, uma análise mais cuidadosa rechaça facilmente essa ideia.

Comecemos pela cabeça de ouro. A nossa tendência é interpretá-la como uma referência ao período completo do império Babilônico. No entanto, retomando o que já fora defendido, o hipertema do livro de Daniel é o tempo do fim, e a composição da estátua não é um resumo da história, mas uma seleção de fragmentos da história que são conexos à história do exílio judeu e ao tempo do fim. O próprio profeta Daniel declarou: “Tu, ó rei, rei de reis, a quem o Deus do céu conferiu o reino, o poder, a força e a glória; (…) tu és a cabeça de ouro” (Dn. 2:37-38). Em nenhum momento foi declarado que a cabeça de ouro abrangeria todos os sucessores de Nabucodonosor – se assim fosse, Daniel teria dito que a cabeça de ouro seria o rei e seus sucessores.

Isso significa que, de todo o período de domínio babilônico, o intervalo que se liga diretamente ao tempo do fim, ao menos no contexto da visão da estátua, é o do governo de Nabucodonosor, portanto, apenas este rei tem íntima ligação na composição do anticristo escatológico. Em outro momento, contudo, em Daniel 5 aprendemos que o reinado de Belsazar também tem conexões com o tempo do fim: a Babilônia histórica caiu da noite para o dia, e tal se sucedeu sem que o próprio rei suspeitasse, pois, mesmo na véspera da ruína, ele deu um enorme banquete regado a muito vinho; paralelamente, a Babilônia escatológica não estará ciente da iminência de sua ruína, antes viverá uma falsa segurança e será entorpecida pelo seu vinho. Então, percebemos que o fato de Daniel ter dito que a cabeça de ouro é apenas o rei Nabucodonosor não quer dizer, necessariamente, que os outros reis devam ser descartados do estudo do tempo do fim, mas significa, por outro lado, que simplesmente eles não estão diretamente aludidos na estátua.

Em seguida, ao contrário do que disse em referência à cabeça de ouro, Daniel interpreta as próximas partes da estátua como uma sucessão de reinos seguintes: “Depois de ti, se levantará outro reino, inferior ao teu” (Dn. 2:39).  Depreendemos disso que o segundo reino, diferentemente do primeiro, aponta para todo o período do império Medo-Persa e não apenas ao governo de um rei específico. Além disso, a expressão ‘depois de ti’, usada apenas nessa parte, sinaliza-nos que os caldeus haveriam de não mais subsistir, ao passo que os outros reinos subsequentes permaneceriam existindo, o que, de fato, tem se confirmado na história[4].

A parte mais curiosa é a do ventre e os quadris ou coxas de bronze. Seguindo a ordem do curso histórico, podemos concluir imediatamente que se trata do império Macedônico. Alexandre, o Grande, atravessou o Helesponto em 334 AEC iniciando sua expansão, mas seu fim foi tão breve quanto rápidas foram suas conquistas: morreu em 323 AEC após se tornar senhor de um enorme império[5]. Os domínios de Alexandre foram repartidos entre os diádocos (generais de Alexandre), inaugurando uma etapa conturbada de disputas e muitas guerras civis. Após a derrota de Antígono, que havia se tornado muito poderoso, o império estava dividido em quatro fatias: Cassandro dominava a Grécia; Lisímaco, a Anatólia; Ptolemeu, o Egito e as terras de Israel; e Seleuco Nicátor, a Mesopotâmia e o restante da porção oriental. 

No entanto, já aprendemos que a estátua enfatiza o tempo do fim e o exílio judeu e, seguindo essa linha, a parcela da história que deve ganhar relevo na visão seria a fase inicial de Alexandre, que subjugou Jerusalém em 332 AEC, seguida dos domínios da dinastia Ptolemaica e Selêucida na terra santa. Nesse sentido, ao fazermos um paralelo entre os fatos históricos e a estátua, identificamos que o ‘ventre de bronze’ mostra-nos o início do domínio grego em Israel, ou seja, a fase de expansão sob a liderança de Alexandre, ao passo que a ‘fase das coxas’ aponta-nos para a etapa seguinte: o domínio ptolemaico e o selêucida. Dessa forma, temos um recorte histórico do domínio grego (Alexandre, seguido das duas dinastias, ptolemaica e selêucida) sobre Israel totalmente conexo com a visão da estátua (ventre e duas coxas). Os números são coincidentes e confirmam a ligação da estátua com o exílio do povo judeu. Quanto às relações escatológicas do domínio grego, serão estudadas posteriormente no capítulo 7.

Acredito que já deu para perceber que as outras duas fatias do império (a de Cassandro e Lisímaco) não tiveram relevância na descrição da estátua, afinal não subjugaram a terra de Israel. Contudo, essas duas partes ainda podem ser percebidas, mas apenas de forma implícita, quando consideramos que, abaixo do ventre, temos também o falo e os glúteos, os quais, juntamente com as duas coxas, somariam quatro partes. De fato, as porções de Lisímaco e Cassandro não poderiam ser totalmente excluídas porque têm também relação com o tempo do fim, pois foi nessas regiões que se desenvolveu a tão famigerada filosofia grega que toma conta até hoje do pensamento ocidental. 

  Em resumo, vejamos um resumo esquemático do que estudamos ao longo de todo esse artigo:

Objeto de estudoO que aprendemosConclusão
Cabeça de ouroReferência ao rei NabucodonosorMateriais da estátua podem se referir tanto a períodos específicos de um império quanto à sua integralidade
Peito de prata, ventre e coxas de bronzeUnião política de dois povos diferentes (medos e persas); e diferentes tribos gregas unidas pela culturaCada material pode se referir tanto a apenas um quanto a mais povos, desde que estejam unidos de alguma forma (culturalmente, caso dos gregos, ou politicamente, caso dos medos e persas)
Ventre e coxas de bronzeFases diferente de domínio: expansão de Alexandre (ventre) e dinastia selêucida e ptolemaica (coxas direita e esquerda)Cada parte da estátua corresponde a um período diferente, mesmo que as partes tenham um mesmo material (bronze)

[1] SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Daniel: a new translation with a commentary anthologized from talmudic, midrashic and rabbinic sources. 2. ed. New York: Artscroll, 2019, p.104 (Artscroll Tanach Series).

[2] SLOTKI, Dr. Judah J. Daniel, Ezra, Nehemiah. London: Soncino Press, 1978. (The Soncino Books of the Bible), p.70.

[3] RABINOWITZ, Rabbi Chaim Dov. DA’ATH SOFRIM: Commentary to the Books of Daniel Ezra Nehemiah. New York: Moznaim, 2003, p. 42.

[4] RABINOWITZ, Rabbi Chaim Dov. DA’ATH SOFRIM: Commentary to the Books of Daniel Ezra Nehemiah. New York: Moznaim, 2003, p. 42.

[5] CASTRO, Paulo de. Alexandre, o Grande. Biblioteca da História. Rio de Janeiro: Editora Três, 1973, p.190-192.

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