O Reino do Barro

Nesse artigo vamos estudar qual seria o povo visto como barro, na visão da estátua do sonho de Nabucodonosor, ou mais especificamente, os dois barros mencionados no livro de Daniel: o barro de cerâmica e o de lodo. Na primeira etapa vamos estudar a expressão ‘reino dividido’, o simbolismo bíblico para a palavra barro, e depois avançaremos para os estágios de maturação do povo do barro de cerâmica e de lodo e a história de ambos.

1. Identificando o barro: o reino dividido

Agora voltemos nosso olhar para o barro. Ele aparece em dois pontos distintos da estátua: pés e artelhos. Isso nos sinaliza dois períodos diferentes, assim como aconteceu com o ventre e as coxas de bronze. O barro, em ambos os casos, aparece junto com o metal, sinalizando-nos dois povos diferentes. Se eles estivessem governando juntos, como um reino integrado, seriam vistos como um mesmo material – tal como ocorreu com os medos e os persas, os quais, juntos, eram uma mesma prata. Portanto, estamos tratando de dois povos ou grupos de povos diferentes que não governam juntos, ou seja, eles têm domínios distintos. Em outras palavras, o ‘reino do barro’ e o ‘reino do metal’ não se misturaram, o que faz deles um reino essencialmente dividido (Dn. 2:41).

Nesse caso, não seria mais correto dizer que o ‘reino do metal’ e o ‘reino do barro’ são, na verdade, dois reinos? Então, por que as Escrituras os consideram apenas um mesmo quarto reino? Uma visão panorâmica do quarto reino nos ajuda a responder a esse questionamento. Podemos extrair da visão profética que o quarto reino contém três fases (canelas, pés e artelhos): na ‘fase das canelas’, o quarto reino era apenas de metal; depois, na ‘fase dos pés’, se subdividiu em metal e barro; por fim, manteve essa estrutura dividida até o fim na ‘fase dos artelhos’. Por essa perspectiva, portanto, as fases dos pés e artelhos seriam apenas etapas subsequentes do mesmo quarto reino, o qual já havia começado desde as canelas. Em outras palavras, o profeta Daniel declarou que o quarto reino começaria unido nas canelas (apenas metal), mas depois se dividiria nos pés e artelhos (metal e barro).

Devemos ponderar, ainda, que, caso os reinos do metal e do barro fossem completamente divididos, não seria razoável considerá-los como apenas um único reino, ainda que dividido. De fato, no original a palavra traduzida como ‘dividido’ normalmente tem o sentido de ‘diverso’ ou ‘composto’[1]. Presume-se, portanto, que deve haver, concomitantemente, alguma conexão entre eles para que sejam considerados apenas um único reino, bem como elementos que os separam, para que sejam chamados de divididos. Segundo o Da’ath Sofrim, a expressão ‘reino dividido’ tem o sentido de múltiplos governantes simultâneos, mas que, eventualmente, serão uma unidade no futuro[2]. Um verdadeiro paradoxo. Contudo, só conseguiremos entender a conexão entre esses dois reinos quando observamos que, sutilmente, Daniel nos adverte que há dois tipos de barro: barro de cerâmica e barro de lodo. O primeiro não se mistura de forma alguma com o metal; o segundo, por sua vez, consegue realizar essa ligação colaborando para que haja alguma consistência entre esses dois reinos de forma que possam caminhar juntos – como se fossem apenas um. Essa ligação promovida pelo lodo não é forte o bastante para unir o metal e o barro de cerâmica como um só povo (Dn. 2:43), mas consegue conferir a firmeza do metal para essa relação (Dn. 2:41). O barro de lodo funciona basicamente como uma argamassa que liga o barro de cerâmica ao metal, misturando-se com ele de forma a promover um grau limitado de unidade.

Já estudamos na série de artigos acerca de Daniel 11:36-12:1a que essa passagem discorre sobre a vida do profeta Muhamad, a expansão islâmica, queda dos Otomanos, império Britânico, massacre armênio e conclui com a guerra dos Seis Dias. Veremos ainda, em artigos futuros da mesma série, que Daniel 11:1-35 abarca desde o fim do período persa, perpassando por Alexandre e diversos acontecimentos pertinentes às dinastias ptolemaica e selêucida, seguida da invasão romana na terra santa, a destruição do Segundo Templo, a perseguição de Diocleciano, o governo de Constantino e a alusão ao processo de purificação do povo de Deus até 1967. Partindo dos postulados da coerência defendida pela linguística textual como elementos imprescindíveis a um texto, é razoável considerarmos que cada parte da estátua está conexa com outras partes do livro. Assim, se as narrativas do domínio grego estão conexas com o ventre e coxas de bronze, então a fase romana, a expansão islâmica e mesmo os impérios modernos (como o Britânico e o Otomano mencionados veladamente em Dn. 11:40-44) devem também encontrar guarida nas partes seguintes da estátua.

Caso seja possível realizar, de fato, tal conexão entre Daniel 11 com a estátua de Daniel 2, por eliminação, poderíamos pensar no seguinte esquema:

Dn. 11Dn. 2
Expansão de Alexandre, o grande (Dn. 11:3-4)Ventre de bronze
Dinastias Ptolemaica e Selêucida (Dn. 11:5-30)Coxas de bronze
Império Romano (Dn. 11:31-35)Pernas de ferro
Povos islâmicos (Dn. 11:31,36-39)Pés de Barro
Impérios Otomano e Britânico (Dn. 11:40-44)Pés de Ferro

O esquema anterior é apenas um rascunho, e será aperfeiçoado gradativamente em artigos seguintes. O tema acerca do ‘povo do ferro’ e os impérios modernos serão tratados em breve, por ora, vejamos mais detidamente o sentido usualmente atribuído ao barro pelas Escrituras.

Na famosa passagem de Jeremias 18, o povo de Israel é comparado ao barro e Deus, ao oleiro. O sentido explícito da metáfora é a soberania de Deus em salvar a quem Ele assim quiser e poder restaurar uma vida com a mesma facilidade com que o oleiro faz com um vaso. A imagem do barro e do oleiro carrega o binômio da impotência ou fragilidade humana e o poder ilimitado do Senhor. O barro tem, portanto, uma conotação religiosa de estar irremediavelmente sujeito aos desígnios de Deus. Essa imagem se repete em outras passagens das Escrituras (Is. 29:16, Jr. 18, Rm. 9:20-21).

Se, de um lado, a imagem do barro carrega um aspecto religioso de submissão a Deus, fragilidade humana diante do poder Dele, devemos ponderar, por outro lado, que o barro de Daniel 2 está no contexto do quarto reino e da formação do anticristo escatológico, já que aparece também na fase dos artelhos – última etapa que precede o advento do reinado messiânico. Isso significa que o barro da estátua não é apenas um poder religioso, mas também político e, sobretudo, guarda um viés maligno. Seguindo a lógica político-religiosa do barro, estamos diante de um poder composto por uma massa de pessoas tão devotas que estão nas mãos desse ‘deus’, que os molda feito um barro, ou seja, eles seguem uma crença religiosa de forma semelhante à sujeição do povo de Deus aos Seus desígnios, mas com o propósito precípuo contrário: atender os intentos das trevas. O teólogo Jacques Doukhan segue basicamente a mesma ideia:

Quando a Bíblia emprega a palavra ‘barro’, sempre a associa com a palavra ‘oleiro’ e sempre evoca o ser humano em uma relação de dependência com o Criador. A referência ao barro tem, portanto, forte conotação religiosa. Temos boas razões para crer que o barro na base da estátua representa um poder diferente, de natureza religiosa, embora associado ao poder político simbolizado pelo ferro[3]. (grifos nossos)

Segundo o entendimento de comentadores judeus, o quarto reino (ferro, ferro/ barro) é uma alusão a Roma, império que incorporou a vontade de Edom, o irmão e arqui-inimigo de Israel. Seguindo esse raciocínio, os rabinos concluem que o barro seria o cristianismo, uma religião irmã do judaísmo, que desde a sua adoção como religião oficial por Constantino tem se dedicado a perseguir os judeus. Roma passou, portanto, por uma metamorfose: primeiramente era um poder secular (apenas ferro) e depois adicionou o poder religioso (ferro/barro)[4]. Os comentadores judeus partem da presunção de que a inimizade de Edom é contra os judeus. Historicamente, isso é válido. Contudo, a vontade de Edom não é apenas perseguir os judeus, mas também toda a comunidade que segue Jesus, como o Cristo, filho de Deus – sem distinção entre judeus e gentios – além de ter o propósito específico de pisotear a terra santa.

Juntemos agora todos os pontos: o barro é um poder religioso associado a um poder político; remete à submissão do homem a Deus e ao binômio da impotência humana diante do poder soberano e ilimitado de Deus; por ser um elemento da estátua de Nabucodonosor, o barro é um poder de uma religião falsa que guarda, em sua aparência de simplicidade, conexões com o cristianismo puro e sincero; o barro se associa a Edom, uma autoridade maligna que persegue o povo de Deus, mas é ao mesmo tempo seu parente próximo. Somando essas evidências, trabalharemos doravante com a hipótese de que o barro é uma referência à Dar al-Islam (Casa do Islã).

Comecemos pela análise etimológica do nome ‘islã’. A Islamic Encyclopaedia nos ensina que islã significa ‘submissão, rendição total a Deus’:

Aquele que se submete a Deus é o muçulmano [muslim], do qual o plural muçulmanos [muslimun] ocorre muito frequentemente em todas as suras. Islã, por outro lado, ocorre apenas oito vezes. Mas a palavra tem que ser considerada em conjunção com uso comum do verbo aslama nos dois significados que se fundem um ao outro: ‘render-se a Deus’ (uma ação interior) e a ‘profissão do islã’, que é declarar anuência à mensagem do profeta[5]. (grifos nossos)

A própria definição de islã já nos remete à imagem do barro e do oleiro: um povo totalmente submisso a Deus e cujo destino está em Suas mãos. Contudo, os diversos conceitos de Deus para os islâmicos são diferentes do entendimento esposado pelos cristãos, de forma que, teologicamente, Allah, apresentado pelo Alcorão, não se confunde com o Senhor, apresentado pelas Escrituras. Ou ainda, usando uma expressão do livro de Daniel, Allah é o ‘deus das fortalezas’ ao invés do “Senhor, minha fortaleza”, dos salmos de Davi (Sl. 31:4; 43:2). Nesse ponto, os muçulmanos se encaixariam perfeitamente na figura do barro: são submissos a Deus, mas não ao Deus das Escrituras, mas a Allah, a deidade única do Alcorão. Portanto, ao contrário do que afirmam os comentadores rabínicos, podemos considerar que o islã, e não o cristianismo, representa um poder religioso e político de um povo submisso a um Deus único, porém falso e diferente do apresentado pelas Escrituras.

A mais alta relevância da lei islâmica igualmente aponta para o barro. O próprio conceito de lei para os muçulmanos tem uma natureza divina. A lei é chamada de sharia e significa uma trilha na direção de alguma coisa. Em princípio, nem mesmo existe Poder Legislativo em um estado muçulmano: o processo legislativo ocorria na forma de comentário ou interpretação dos juristas ou no padrão de regulação dos governos (kanun) – o objetivo disso era a aplicação correta da lei divina e eterna[6]. Isso nos mostra a relação indissociável entre política e religião no contexto islâmico: o objetivo do Estado é aplicar a sharia e propagar o islã. E quando chamamos a atenção para esse ponto, é necessário compreendermos também que o próprio islã foi fundado não apenas por um líder religioso, mas também político: o profeta Muhamad foi um estadista e, como tal, comandou exércitos, fez a guerra, proclamou a paz, coletou impostos e promoveu justiça[7]. O maquinário do governo favoreceu, por excelência, a lei sharia e era um instrumento de expansão religiosa e não apenas política. Não é sem razão que muitos historiadores nomeiam a ascensão dos árabes como uma expansão islâmica – e não propriamente árabe –, realçando mais o aspecto religioso desse avanço. Os califas eram sucessores políticos do profeta, além de autoridades religiosas, e não tinham como expandir o islã sem fazer uso de guerras. A distinção entre Igreja e Estado não faz, portanto, qualquer sentido no islã: religião e política estão misturadas desde a raiz de sua existência, ou seja, na própria biografia do seu fundador. Por outro lado, no caso da cristandade, esse binômio é historicamente justificável porque o cristianismo nasceu frágil e debaixo de perseguição, e somente mais tarde, a partir de Constantino, os cristãos foram adotados no seio do poder político – ensejando, desde então, uma relação entre o poder secular e o espiritual. Já o islã nasceu forte, como uma política de estado, conquistando e se expandindo, e a crença muçulmana era de que mais cedo ou mais tarde eles iriam conquistar o mundo. Em resumo, tanto a natureza divina da lei quanto a íntima conexão entre a religião e a política reforçam ainda mais o entendimento de a Casa do Islã ser o barro da estátua.

Há ainda mais argumentos em favor de o barro representar os povos islâmicos. Um deles é o aspecto frágil do barro. Ora, se de um lado o barro é frágil, devemos considerar também que nele há alguma força minimamente razoável, pois o ‘povo do barro’ conseguiu se expandir na ‘fase dos pés’, formando seu próprio reino. Em suma: um povo fraco, mas que, devido às circunstâncias, conseguiu se sair como forte. E não foi justamente isso o que aconteceu? Os árabes tiveram seu empreendimento facilitado pela fragilidade em que se encontravam os Impérios Bizantino e Persa, que estavam exauridos após muitos embates. Mesmo não sendo um povo historicamente temido pelo seu poderio militar, os árabes conseguiram sobrepujar seus adversários, que estavam em estado de exaustão[8].

Ao longo deste artigo, teremos ainda mais confirmações da identidade do barro. A Casa do Islã é composta principalmente de três povos: árabes, turcos e persas (atuais iranianos). Ora, os persas já são o peito de prata, motivo pelo qual os excluiremos da nossa análise do barro e voltaremos a estudá-los futuramente. Para compor o barro, sobraram, portanto, os árabes e os turcos. Um deve ser o barro de cerâmica e outro, o de lodo (não nos esqueçamos de que temos dois barros diferentes na estátua). Doravante, veremos nas seções seguintes a evolução histórica do barro e a identidade do barro de cerâmica e o de lodo.

2. A maturação do barro e os povos islâmicos

No pé e artelhos da estátua nos são apresentados dois tipos de barro: lodo e cerâmica. Ambos são barro, mas estão em estágios de evolução diferenciados. Refletiremos neste tópico sobre as fases de maturação do barro e sua relação com a difusão do islã ao longo da história, por meio do expansionismo dos árabes e do império otomano.

 Quando observamos a estátua, percebemos que cada elemento tem um sentido particular: o ouro, o mais valioso de todos, indica a superioridade da Babilônia sobre todos os demais impérios subsequentes; o ferro, por sua vez, aponta para a força dos romanos. Nessa mesma esteira, devemos atribuir sentido ao barro de lodo e cerâmica a partir das características desses materiais de forma a verificar como a história do islã se encaixa perfeitamente na imagem do barro de lodo e no processo de formação da cerâmica.

Comecemos por refletir acerca do processo de feitura do vaso de cerâmica, que nos ajudará a entender o seu sentido profético. Podemos resumi-lo nas seguintes etapas:

EtapasDescrição
1aseleção das argilas;
2apurificação do barro;
3ao barro é umedecido e amassado para ganhar liga e sustentação;
4afase da curtição, em que o barro é posto para descansar e coberto de forma a soltar bolhas de ar;
5ao barro é moldado pelo oleiro;
6asecagem;
7aaquecimento no forno.

Se os povos islâmicos são o barro da estátua, então os primeiros a iniciar a maturação do barro foram justamente os árabes. Já vimos no artigo Daniel 11:39 parte I que, durante a expansão islâmica, não houve imposição religiosa, mas, ao contrário disso, os árabes até desmotivavam a conversão ao islã. Os povos conquistados eram chamados de dhimis e tinham sua religião respeitada. A forma de governo dos rashidun (os bem guiados) e da dinastia omíada era flexível e, basicamente, relegaram os dhimis a cidadãos de segunda classe cobrando-lhes impostos a uma taxa mais elevada. Eles sofriam algumas discriminações sociais e, em raras ocasiões, eram sujeitos a perseguições abertas[9]. A convivência inter-religiosa era, em geral, pacífica. Essa capacidade inicial dos árabes de relacionar-se harmoniosamente com outros povos mostra-nos bem a maleabilidade do barro, o qual, ao menos na sua fase inicial, ainda pode ser moldado pelo oleiro. Essa maleabilidade dos árabes é notada também no período da convivência na Península Ibérica em que muçulmanos, judeus e cristãos conseguiam conviver em harmonia.

Segundo Lewis, há três características principais da civilização dominante do islã medieval: o poder assimilativo da cultura árabe, que não se confunde como meramente imitativo; a sua relativa tolerância, pois, de um lado, impôs algumas discriminações sociais e legais, sinalizando a supremacia muçulmana, e, de outro, concedeu liberdade religiosa, econômica e intelectual aos cidadãos e dava-lhes a oportunidade de contribuir para o progresso da civilização árabe; e, por fim, o islã medieval estava convicto de sua superioridade e autossuficiência ante todas as outras religiões[10]. Ao longo dos séculos, contudo, o islã foi se tornando mais rígido.

Outra característica é a impersonalidade ou coletivismo da literatura árabe:

“o livro não é apresentado como uma construção individual e pessoal do autor, mas como um elo na cadeia transmissora, e o autor esconde a sua personalidade por detrás do prestígio da autoridade e da posição ocupada por anteriores transmissores. A própria poesia, de expressão essencialmente individual, apresenta características mais de uma poesia pública e social do que pessoal e íntim0a”[11].

Juntando, portanto, o coletivismo ou impersonalidade na literatura medieval árabe com as características de uma civilização tolerante e com alta capacidade de absorção de diferentes culturas, não fica difícil entendermos o sentido de os povos islâmicos serem representados pelo barro: um material composto da mistura de várias argilas, maleável e capaz de se misturar ou grudar em diferentes materiais. Obviamente, quando o barro se torna cerâmica, perde a sua flexibilidade. O próprio Lewis pontuou também essa evolução da cultura árabe, da maleabilidade e tolerância para uma atual rigidez:

“Uma vez mais, tal como no dia em que o avanço dos guerreiros árabes pôs a sua fé em contato com o Helenismo e criou algo de novo e profícuo [fase maleável do barro] o islã de hoje ergue-se face a face ante uma civilização estranha que põe em questão muitos dos seus valores fundamentais (…) desta vez as forças de resistência são muito mais sólidas. O islã já não é uma fé nova, ainda quente e maleável saída do cadinho árabe, mas uma religião antiga e institucionalizada, moldada por séculos de hábito e tradição em padrões rígidos de conduta e de fé [hoje o islã é barro de cerâmica]”[12]. (grifos nossos)

Uma vez que já assentamos o entendimento das similaridades entre as características dos islâmicos e do barro, bem como o processo de rigidez do barro para a cerâmica, como um sinal da progressão da fé islâmica, discutiremos agora como se deu a etapa da separação da argila (1a etapa) e, para isso, precisaremos mergulhar um pouco na cosmovisão muçulmana. Assim como nos pés da estátua temos uma composição de dois materiais (metal e barro), no islã temos igualmente duas categorias básicas: a Casa do Islã (Dār al-Islām), formada por todos os países em que prevalece a lei islâmica; e a Casa da Guerra (Dār al-Harb), ou o resto do mundo. Na prática, contudo, era uma forma de se referir à cristandade europeia, embora não se limitasse apenas a isso. Aliás, se o nome da Europa pouco significava para os árabes, a cristandade, por sua vez, tinha uma representação muito importante no mundo islâmico[13].

Em termos ideais, a Casa do Islã é concebida como uma única comunidade, governada por um único Estado, encabeçado por um único soberano (…) a lógica da lei islâmica não reconhece a existência permanente de nenhuma outra comunidade política fora do islão[14].

A separação da argila equivaleria, portanto, à seleção geográfica dos povos que se tornaram islâmicos (Casa do Islã) postos à parte de todos os outros (Casa da Guerra). Averiguemos agora alguns marcos históricos que delimitaram a fronteira entre a Casa do Islã e a Casa da Guerra:

Marcos históricosDescrição
1187         Saladino reconquista Jerusalém        
1291Os mamelucos expulsam os latinos da Palestina
1453A conquista de Constantinopla pelo império Otomano garantiu o domínio islâmico em toda a Anatólia e assim permanece até hoje
1492A expulsão dos muçulmanos e judeus da Espanha sepultou o domínio islâmico na Península Ibérica
1529Primeiro cerco de Viena (fronteira entre Casa do Islã e cristandade consolidada)

Pela tabela anterior percebemos que, no século XVI, as fronteiras entre os povos islâmicos e a cristandade estavam bem definidas e, até hoje, não houve avanço. A ‘janela’ de conversões em massa já tinham se fechado de ambos os lados. Entre os séculos X e XIV os turcos levaram o islã para a Anatólia, Bálcãs e sudeste da Europa e outros lugares da Ásia[15], e entre essas regiões, o maior sucesso se deu na Anatólia.

Vejamos agora a fase da purificação do barro (2a à 4a etapa), que aponta para a islamização maciça das áreas conquistadas na Anatólia, Oriente Médio e norte da África – até hoje, todas essas três regiões são quase que integralmente islâmicas. Comecemos pela Anatólia. No ano de 1923, a Anatólia, uma região de maioria islâmica em que havia ainda uma maciça presença de cristãos, foi definitivamente ‘purificada’ com a expulsão dos gregos. Tal fato se sucedeu após a guerra Greco-Turca, entre 1919 e 1922. Além disso, outro marco importante nessa mesma época foi o ano de 1922 – cumprimento dos 1.290 anos –, que encerrou uma fase importante para a formação dos povos islâmicos: o fim do sultanato simboliza o fim do poder de guerra que o islã tinha sob a liderança do califado, até então nas mãos dos Otomanos. Doravante, formou-se a Turquia, um estado nacional moderno e secularizado cujo líder não guardava mais relações com o califado. O viés teocrático se perdeu e já não havia, portanto, um império islâmico. Aprenderemos na seção 4 que a ascensão do secularismo na Turquia marca um amadurecimento do barro de lodo. Em resumo, seguindo a metáfora do barro, o cumprimento dos 1.290 anos aponta para a ‘purificação’ da Anatólia, que se tornou quase 100% islâmica, e a ascensão do secularismo tornando o islã, para os turcos, uma religião ‘madura’ no sentido de que é capaz de estabelecer um diálogo com as demandas ocidentais sem perder seu matiz religioso.

Por outro lado, quando observamos as regiões de domínio árabe (Oriente Médio, norte da África, Egito e Irã), o processo de islamização dos povos conquistados foi concluído muito antes do século XX. As conversões ao islã intensificaram o processo em curso da integração árabe para uma nova ordem política e cultural[16]. Ao contrário do que acreditavam os primeiros estudos dos catedráticos ocidentais, as conversões não eram realizadas na ponta da espada: conversão ou morte. Embora esse método não fosse desconhecido, seu uso foi, na verdade, bem raro. Basicamente, as conversões eram voluntárias: motivadas por iluminação da fé, pela virtude da santidade de muçulmanos devotos, como também pela ponderação de vantagens políticas e econômicas[17]. Já estudamos no artigo Daniel 11:38 parte I alguns pontos da ortodoxia islâmica e da higidez moral e profunda devoção dos quatro califas bem guiados.

Vejamos um panorama do histórico de conversões ao islã traçado por Lapidus:

1. Oriente Médio: a conversão dos árabes deu-se em dois estágios. O primeiro foi a conversão de animistas e politeístas pertencentes às sociedades tribais do deserto árabe e da periferia do crescente fértil. O segundo foi a conversão das populações monoteístas das sociedades agrárias, urbanizadas e imperiais. Já a conversão da população não árabe seguiu uma trilha diferente, mas também dividida em duas fases: inicialmente os árabes islâmicos queriam se manter como elite exclusivista (sem fins missionários, eram até mesmo hostis às conversões). Havia muitos atrativos econômicos e sociais para estimular a conversão, mas foi pequena até o século X. Num segundo momento, entre os séculos X e XII, o enfraquecimento das igrejas cristãs, as divisões das comunidades não islâmicas, perseguições entre muçulmanos e comunidades não muçulmanas e a destruição da nobreza do Iraque e do Irã enfraqueceram a organização comunitária dos povos não muçulmanos. Professores muçulmanos foram capazes de liderar a reconstrução das comunidades locais com base em crenças e identidades islâmicas.

2. Egito e Irã: a maior parte das conversões ocorreu entre os séculos X e XI.

3. Norte da Síria: entre os séculos XIII e XIV. O processo demorou mais nessa área por conta dos movimentos das cruzadas.

4. Norte da África: ocorreu durante a expansão árabe, mas o islã foi adotado de uma forma sectária, pelos chefes das sociedades berberes. O processo de islamização de cristãos e judeus nessa região é desconhecido, mas foi mais rápido do que no Oriente Médio.

5. Anatólia: a proximidade cultural dos cristãos com a filosofia islâmica ajudou no processo. De forma semelhante ao que ocorreu no Oriente Médio, o poder estatal muçulmano, o declínio das igrejas cristãs e a ascensão do islã, com todos os privilégios distribuídos apenas aos muçulmanos, facilitaram as conversões em massa para a nova religião. O espalhamento do islã na Anatólia foi paralelo ao do Oriente Médio (séculos X a XII).

6. Bálcãs: o islã foi limitado pela vitalidade das igrejas cristãs. Os otomanos favoreceram os nobres e as igrejas cristãs, usando-os como instrumento de controle administrativo.

Como de costume, vejamos uma tabela que resume o conteúdo ora discutido:

Etapas do barro de cerâmicaDescriçãoCumprimento
Seleção da argila (1a etapa)Demarcação geográfica dos povos islâmicosEm 1492, os muçulmanos foram expulsos da Península Ibérica e em 1453 os Otomanos tomaram Constantinopla; em 1529, os Otomanos esticaram seu domínio até as portas de Viena.
Purificação do barro (2a à 4a etapa)Conversão da maioria da população dos territórios conquistadosNorte da África: durante a expansão islâmica Oriente Médio: XII Anatólia: XII, 1453 e se completou em 1923 (saída dos gregos) Egito e Irã: XI Norte da Síria: XIV  

De forma geral, verificamos que, desde o século XVI, já haviam sido concluídas a seleção territorial e a conversão maciça das áreas que ainda conhecemos como maioria islâmica – a troca populacional de 1923 entre Grécia e Turquia não foram conversões, mas ajudaram a completar a purificação do barro. As fronteiras entre cristãos e muçulmanos já estavam, portanto, bem definidas.

Avancemos, por ora apenas brevemente, para a parte da moldagem, secagem e aquecimento (5a à 7a etapa), as quais afetam diretamente o enrijecimento do barro – elas serão discutidas mais detidamente nas seções seguintes. O que seria o molde? Uma vez que estamos tratando da Casa do Islã, o molde guarda relações com o início do processo de enrijecimento das crenças islâmicas, bem como a formação de um corpo político em que toda a umma se organizou na fase subsequente à purificação (2a à 4a etapa). Estamos tratando, portanto, de acontecimentos a partir dos séculos XV-XVI. E, justamente nessa época, temos o sultanato de Mehmet II, sua conquista de Constantinopla e, posteriormente, sob a liderança de Suleyman, o magnífico, os islâmicos assumiram o molde de um império transcontinental e os turcos fizeram a conexão entre o mundo árabe e a cristandade europeia. Durante os séculos XV e XVI, a política, entre os árabes, estava não apenas moldada (sob o domínio otomano) como também o próprio islã foi se enrijecendo cada vez mais entre eles.

Por fim, não podemos nos esquecer de que, quando tratamos do processo de enrijecimento, estamos nos referindo ao barro de cerâmica; quanto ao barro de lodo, não deve, por definição, ser um elemento duro. Portanto, apenas o ‘povo do barro de cerâmica’ passou pela etapa de aquecimento (7a etapa), ao passo que o ‘povo do barro de lodo’ avançou até o molde e secagem (5a e 6a etapas). Essa discussão, contudo, é extensa demais para esta seção. Já que estamos tratando de árabes e turcos, prosseguiremos mais a fundo nas seções seguintes estudando sobre quem são esses povos.

3. Quem são os árabes?

Já contamos um pouco da história dos povos árabes nos artigos sobre Daniel 11:36-39, mas não podemos avançar em nosso estudo sem que discutamos a problemática em torno do conceito de árabes. Numa perspectiva etimológica, a hipótese mais razoável seria a tentativa de se estabelecer uma conexão entre essa palavra e o conceito de nomadismo.

Foram diversos os métodos empregados: relacionando-a com o hebraico ‘Arabha – terra escura ou estepe; com o hebraico ‘Erebh – misturado, e, portanto, desorganizado por oposição à vida organizada e ordenada das comunidades sedentárias, rejeitadas e desprezadas pelos nômades (…) a relação com o nomadismo é comprovada pelo fato de os próprios árabes terem usado, ao que parece, esta expressão, em tempos recuados, para distinguirem os beduínos dos habitantes de língua árabe das cidades e aldeias, distinção que se mantém, em certa medida, até hoje[18]

No Alcorão, o termo árabe é usado exclusivamente para fazer referência aos beduínos do deserto[19]. Contudo, a partir do século VIII, o império árabe foi ganhando cada vez mais um contorno religioso, tornando-se mais islâmico do que propriamente árabe. Isso promoveu uma redefinição do conceito de árabe associando-o não apenas aos beduínos, mas também à variada cultura do império, criada por homens de diferentes etnias e religiões, mas desde que em língua árabe e condicionada pelo gosto e tradição árabes.

A definição atual é considerar os árabes “como uma nação ou um conjunto de nações irmãs no sentido europeu, unidas por um território, por uma língua e por uma cultura comuns e por uma aspiração comum à independência política”[20]. Hoje os árabes se encontram no sudoeste asiático, Egito e norte da África. 

Figura 1 – Mapa dos povos árabes

Fonte: Wikipedia[21]

4. Quem são os turcos?

Agora é o momento de conhecermos mais detidamente os turcos. Veremos primeiramente sua origem étnica, depois daremos destaque aos seljúcidas e, principalmente, aos otomanos, de onde veio a Turquia moderna.

Até 540 EC, no norte da China, os turcos eram vassalos do império Zhouan-zhouan (talvez proto-mongóis) e estavam divididos em duas confederações tribais: uma localizada ao norte de Altai e a outra na bacia do rio Selenga. Após uma revolta, os turcos do rio Selenga conseguiram livrar-se do domínio Zhouan-zhouan e tornaram-se senhores da Mongólia em 552, sob o comando de Bumin. Tempos depois, sob a liderança de Tardu, movido sob um temperamento impulsivo e aventureiro, os turcos marcharam contra cidades bizantinas do Chersonese (576-590), no Mar Negro. Tardu realizou diversas incursões com outras tribos turcas desde 581, e se aproveitou da fragilidade que estava ocorrendo em tribos turcas da Mongólia para submetê-las ao seu domínio em 600-601, mas falhou e teve que fugir em 603. O resultado disso foi uma ruptura definitiva entre os turcos: os do oriente, mesmo tendo recuperado a unidade sob El-Kaghan (620-630), tornaram-se protetorado dos chineses por meio século (630-682), e os do ocidente, que mantiveram certa unidade sob o comando de Tong Yagbu (618-630), mas após o seu assassinato dividiram-se em duas facções que nunca mais se uniram novamente e, assim como os turcos orientais, tiveram que amargar o domínio chinês por cinquenta anos[22].

Em 682 os turcos ocidentais libertaram-se do domínio chinês sob a liderança de Tonyukuk, que se autointitulou rei sob o nome de El-tärish Kaghan e conseguiu unificar grande parte das tribos turcas da Mongólia. Em 734 o rei Tängri Kaghan assumiu o trono e, após sete anos de reinado, foi assassinado e todas as tribos turcas de seu domínio se rebelaram. Daí em diante, passaram a reinar os Uyghur (744-840), que eram a própria tribo real de Tokuz Oghuz. Quando eles foram dispersos pelos kirkiz (nome antigo do grupo étnico turco dos kirghiz) em 840, os Oghuz estavam a caminho de fundar aquilo que veio a se tornar o Turquistão Oriental, com a língua turca em seus manuscritos com conexões persas, sodgianas, siríacas, sânscritas ou chinesas, a depender da religião que eles adotassem.

O povo de língua turca da Ásia Central converteu-se progressivamente ao islã a partir de 950. A maioria deles se autoidentificava, como marco inicial de sua linguagem escrita, como turcos. Então, o nome turco, que originariamente denotava apenas uma confederação tribal no Altai, estendeu-se para todo grupo linguístico sob a influência da linguagem escrita da última dinastia dos turcos orientais. Outros Oghuz, pertencentes a esse mesmo grupo linguístico, migraram para o oeste através das estepes asiáticas do interior, tornaram-se islâmicos e núcleo do império Seljúcida e, depois, do Otomano.[23]

Após o colapso dos turcos Uyghur, algumas confederações turcas surgiram ou reemergiram e, na Ásia Central, três unidades podem ser delineadas: os turki a sudeste, os kipcak a noroeste e os Oghuz a sudoeste[24]. Para o nosso estudo interessa-nos apenas a saga dos Oghuz, por ser essa a origem dos seljúcidas e otomanos.

Os Oghuz chegaram a Syr Darya (atual Uzbequistão) durante o califado abássida de Al-Mahdi (775-785). A união Oghuz nunca foi além das fronteiras de uma confederação tribal avançada. Era dividida em duas subconfederações: Bozok (a mais antiga) e Ücok (a mais nova). Os otomanos vieram da tribo Kayi da subconfederação Bozok e os seljúcidas, da tribo Kinik (da subconfederação dos Ücok)[25].

O islã tinha começado a penetrar em vários grupos tribais e logo se tornou uma fonte ou pretexto para guerras sangrentas. Os Oghuz e Karluks que se convertiam ao islã foram chamados de turcos, mas a razão pela qual o termo ‘turco’, até então associado particularmente aos Oghuz, passou a ser uma referência aos islâmicos não é clara[26]. No entanto, para o nosso estudo do livro de Daniel, a conexão entre ‘turco’ e ‘muçulmano’ desde essa época mostra-nos como os turcos também fazem parte do povo do barro.

Na metade do século XI uma confederação turca conquistou o Irã e, em 1055, ocupou Bagdá estabelecendo-a como a capital da dinastia Seljúcida. Muitos desses turcos migraram para a Anatólia por razões geográficas e climáticas propícias para práticas pastorais. A migração se tornou mais efetiva especialmente após 1071, quando os Seljúcidas venceram os bizantinos na batalha em Manzikert, na Anatólia oriental[27].

Em 1243 o sultanato seljúcida declinou drasticamente durante a expansão do império Mongol, que conquistou o Irã, Anatólia, Iraque e tornou o sultão seu vassalo. A pressão exercida pelos mongóis para usar as terras da Anatólia oriental ‘empurrou’ os turcos para o ocidente em busca de novas terras para pastoreio, as quais pertenciam ao império Bizantino. Nesse tempo, os bizantinos estavam fragilizados, pois o foco na recuperação da cidade de Constantinopla, em 1261 – que estava sob o domínio do império latino por ocasião da conquista da quarta cruzada –, enfraqueceram sua fronteira oriental. Já no início do século XIV, o governo mongol declinou e a região pertencente ao canato e aos seljúcidas se fragmentou em diversos principados. Um deles era o emirado de Osmã, o fundador da dinastia otomana, que, naquele tempo, era um posto avançado na fronteira com o império Bizantino[28].

Vejamos agora, brevemente, o nascimento do império Otomano. Mesmo antes da invasão Mongol do século XIII, todas as confederações tribais da Ásia Central estavam em declínio e se fragmentando, o que motivou um movimento migratório para a Anatólia e, como dissemos, a expansão dos mongóis causou um deslocamento forçado de ainda mais grupos Oghuz para o Oriente Médio. Esse foi o início da saga da tribo Kayi, pertencente aos Oghuz, onde estava o germe do império Otomano[29].

A história da família dinástica pode ser contada a partir do século XIII, quando turcomanos de diversas tribos, entre as quais os Kayi, então liderados por Ertoghrul, fugindo da invasão mongol, buscaram guarida no sultanato de Rum, que, até então, estava na sua idade de ouro, regida pelo sultão Aladino. Os Kayi, em particular, instalaram-se próximo a Eskishehir em zona fronteiriça com os bizantinos. Muitos dos fugitivos que migraram para a Anatólia eram persas e do estado Kharazmian. Esses turcomanos tinham ainda preservado muitas tradições religiosas pré-islâmicas entre as formas particulares de islã a que eles aderiram: foi o resultado da pregação dos dervixescom doutrinas místicas contendo uma grande quantidade de elementos heterodoxos. Em 1239 os líderes religiosos (babas) se revoltaram, e, apesar de terem sido vencidos, a sua posição heterodoxa entre o povo influenciou profundamente a história dos primeiros séculos do império Otomano[30]. A influência dos dervixes estendia-se até mesmo às elites, que se deixavam influenciar por correntes místicas, entre elas a ordem dos Mevlevi. Todas as classes, portanto, estavam habituadas com o misticismo. Contudo, a linha oficial adotada pelos otomanos e seljúcidas foi a ortodoxa sunita.

Após a queda dos Seljúcidas e a disputa por terras de pastoreio, Osman, filho de Ertoghrul, iniciou o processo de expansão de sua tribo contra os bizantinos vencendo uma batalha em Bapheus, um distrito ao redor de Nikomedia. Em seguida, os bizantinos buscaram uma revanche, mas foram derrotados novamente, perdendo o domínio de ainda mais cidades na Anatólia. Osman é considerado, portanto, o fundador da dinastia otomana – o termo ‘otomano’ aparece como ‘othmanli’ (turco), ‘osmanen’ (alemão), e está conexo ao seu fundador Osman ou Othman (turco). Em resumo, otomano é o nome da família dinástica[31], a única que esteve à frente do império desde a sua fundação até o seu colapso após a I Guerra Mundial.

Conforme percebemos pelo histórico aqui resumido, a composição religiosa do império Otomano consiste tanto em uma poderosa influência sufista, portanto, mística e heterodoxa, quanto na sunita ortodoxa. Até mesmo na intimidade do próprio palácio, era visível a diversidade religiosa: de um lado, o sultão arvorava a bandeira sunita ortodoxa, e, de outro, os janízaros, sua guarda pessoal e tropa de elite, eram muçulmanos fanáticos da ordem bektashi (sufismo de tendência xiita). O sultão Murad I, pai de Mehmet II, o conquistador de Constantinopla, tornou-se um dervixe de uma ordem sufista e se tornou um muçulmano tão devoto que decidiu largar a política para se dedicar à religião – esse plano, contudo, teve que ser logo abandonado, pois seu filho ainda não havia demonstrado maturidade para assumir o comando do império[32]. Foi justamente o ramo mais heterodoxo, com destaque à influência da ordem dos bektashi, que fez o islã ser abraçado na região dos Bálcãs e da Trácia, o que ensejou, até certo ponto, conversões dos cristãos ao islã nessas áreas.

Não nos esqueçamos, contudo, que os turcos otomanos são apenas uma das várias ramificações do povo turco. Ao longo dos anos de seu domínio, o império Otomano absorveu diversos outros principados, especialmente a partir da expansão de Bayezid II (1481-1512), e as diferenças entre os diversos ramos foram se diluindo gradativamente.

O fim do império Otomano já foi comentado no artigo Daniel 11:40. Após o seu colapso e as guerras de independência, formou-se a moderna República da Turquia, em 1923 – sob a liderança do Mustafa Kermal, chamado de Atatürk (pai dos turcos). Hoje as antigas diferenças tribais não fazem mais sentido na Turquia moderna, no entanto, como vimos ao longo desta seção, os turcos são muito maiores que o estado da Turquia. Outros ramos da etnia, que permaneceram mais ao oriente, fazem parte também de outras repúblicas independentes, a exemplo do Azerbaijão, Cazaquistão, Quirquistão, Turcomenistão e Uzbequistão. 


[1] SLOTKI, Dr. Judah J. Daniel, Ezra, Nehemiah. London: Soncino Press, 1978. (The Soncino Books of the Bible), p.18.

[2] RABINOWITZ, Rabbi Chaim Dov. DA’ATH SOFRIM: Commentary to the Books of Daniel Ezra Nehemiah. New York: Moznaim, 2003, p. 44.

[3] DOUKHAN, Jacques B. Segredos de Daniel: sabedoria e sonhos de um príncipe no exílio. Tatuí: Casa Publicadora brasileira, 2017, p. 35.

[4] DOUKHAN, Jacques B. Segredos de Daniel: sabedoria e sonhos de um príncipe no exílio. Tatuí: Casa Publicadora brasileira, 2017, p. 35,36.

[5] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E. J. Brill, 1997, Vol. 4, p.171.

[6] LEWIS, Bernard. Fé e Poder: religião e política no Oriente Médio. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2016, p. 58.

[7] LEWIS, Bernard. Fé e Poder: religião e política no Oriente Médio. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2016, p. 63.

[8] LAPIDUS, Ira M. A History of Islamic Societies. Edição do Kindle. University of California: Cambridge University Press, 2014, p. 50.

[9] LEWIS, Bernard. Os árabes na história. Lisboa: Editorial Estampa, 1990, p.109.

[10] LEWIS, Bernard. Os árabes na história. Lisboa: Editorial Estampa, 1990, p.158-159.

[11] LEWIS, Bernard. Os árabes na história. Lisboa: Editorial Estampa, 1990, p.161.

[12] LEWIS, Bernard. Os árabes na história. Lisboa: Editorial Estampa, 1990, p.199.

[13] LEWIS, Bernard. Fé e Poder: religião e política no Oriente Médio. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2016, p. 32.

[14] LEWIS, Bernard. A descoberta da Europa pelo islã. São Paulo. Perspectiva, 2010, p.57.

[15] LAPIDUS, Ira M. A History of Islamic Societies. Edição do Kindle. University of California: Cambridge University Press, 2014, p. 269.

[16] LAPIDUS, Ira M.. A History of Islamic Societies. Edição do Kindle. University of California: Cambridge University Press, 2014, p. 271.

[17] LAPIDUS, Ira M. A History of Islamic Societies. Edição do Kindle. University of California: Cambridge University Press, 2014, p. 271.

[18] LEWIS, Bernard. Os árabes na história. Lisboa: Editorial Estampa, 1990, p.14-15.

[19] LEWIS, Bernard. Os árabes na história. Lisboa: Editorial Estampa, 1990, p.17.

[20] LEWIS, Bernard. Os árabes na história. Lisboa: Editorial Estampa, 1990, p. 22.

[21] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mundo_%C3%A1rabe. Acesso em: 03 de dez. 2021.

[22] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E. J. Brill, 1997, Vol.10, p. 687.

[23] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E. J. Brill, 1997, Vol.10, p. 688.

[24] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E. J. Brill, 1997, Vol.10, p. 689.

[25] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E. J. Brill, 1997, Vol.10, p. 689.

[26] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E. J. Brill, 1997, Vol.10, p. 690.

[27] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E. J. Brill, 1997, Vol. 8, p.191.

[28] IMBER, Colin. The Ottoman Empire, 1300-1650. Edição do Kindle. UK: Macmillan Education, 2019, p.4-7.

[29] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E.J.Brill, 1997, Vol.8, p.192.

[30] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E.J.Brill, 1997, Vol.8, p.191.

[31] THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM. New Edition. Leiden: E. J. Brill, 1997, Vol. 8, p.190.

[32] RUNCIMAN, Steven. A queda de Constantinopla: 1453. Rio de Janeiro: IMAGO, 2002, p. 48-49.

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