Agora é a vez do ferro. Nesse artigo vamos identificar quem seria o ‘povo do ferro’ vista na estátua do sonho de Nabucodonosor. Esse metal fez parte de três divisões da imagem: canelas, pés e artelhos, o que nos sugere três etapas históricas desse povo. Então, veremos também como podemos estabelecer marcos divisórios, a partir dos próprios tempos determinados do livro de Daniel (2300 tardes e manhas, 1335 dias etc.) e outros fatos históricos profetizado pelo texto, para dividirmos a história do povo do ferro nessas três etapas.
1. O ferro e suas três etapas
A identificação das pernas de ferro não parece ser uma dificuldade. Hipólito de Roma, desde o final do século II, já afirmava se tratar do império Romano por ser o sucessor do império Macedônico e serem fortes como o metal[1]. De fato, a imagem da estátua nos mostra que logo após o reino do bronze (gregos) viria o do ferro (romanos), portanto, pouca margem teríamos para dúvida.
Ao interpretar o sonho para Nabucodonosor, Daniel nos dá as seguintes informações acerca do ferro: “O quarto reino será forte como ferro; pois o ferro a tudo quebra [transl. deqaq] e esmiúça [transl. chashal]; como o ferro quebra [transl. reʿaʿ] todas as coisas, assim ele fará em pedaços [transl.deqaq] e esmiuçará [transl. reʿaʿ] (Dn. 2:40). Daniel nos diz que o ferro é forte, tem a capacidade de quebrar ou fazer em pedaços (deqaq) e esmiuçar (reʿaʿ).
Considerando que cada elemento da estátua corresponde a um império que dominou o mundo antigo, talvez fosse desnecessário informar a força do quarto reino, pois todos os outros também foram poderosos em seu próprio tempo de ascensão ou glória. Contudo, o texto de Daniel 2:40 nos traz alguns detalhes que nos ajudarão a entender melhor a função e natureza dessa força: ela faz em pedaços (deqaq) e esmiúça (reʿaʿ). O termo deqaq nos aponta para o domínio com punho de ferro que será imposto às outras nações; e esmiuçar (reʿaʿ), segundo a referência Strong[2], vem da palavra (reʿaʿ) – que significa ser ruim ou mau, agir maldosamente –, o que nos mostra a natureza diabólica do quarto reino que, além de dominar completamente, esmaga seus adversários com requintes de crueldade. Portanto, mesmo considerando que os impérios anteriores também fossem fortes e tivessem uma natureza maligna, o fato de isso ser atribuído especificamente ao quarto reino mostra-nos que a dimensão dessa força e crueldade será elevada a níveis homéricos. De fato, em Daniel 7:7 temos a confirmação desse entendimento quando a besta – animal que representa o quarto reino, portanto, alude também ao ‘povo do ferro’ – é descrita em termos similares: ela devora (akal), faz em pedaços (deqaq) e esmaga (rephac) o que sobeja.
Em seguida, o texto de Daniel 2:41-43 avança para a fase dos pés e dos artelhos. Aqui temos o paradoxo de um reino dividido discutido no artigo O Reino do Barro. O Da’ath Sofrim segue essa mesma esteira ao considerar que o reino dividido sinaliza governantes simultâneos[3], ou seja, aqueles do ‘reino do metal’ e do ‘reino do barro’. Essa interpretação se confirma no verso seguinte (Dn. 2:42), em que é mencionada, na ‘fase dos artelhos’, a existência de um ‘reino quebrado’[4], uma parte do reino forte e outra, fraca. No Da’ath Sofrim consta também que o reino dividido não tem o sentido de uma dissolução, mas de que se tornará uno depois de um tempo[5], em harmonia, portanto, com a ideia que temos desenvolvido.
O fato de Daniel considerar o quarto reino como o último dos impérios mundanos, que haveria de ser interrompido bruscamente pelo governo messiânico, poderia complicar nossa análise, pois, de fato, o império Romano colapsou completamente, mas não foi suplantado pela chegada do messias – ao contrário, Jesus foi até mesmo crucificado durante a era do quarto reino. Por essa razão, devemos mencionar mais uma vez o conteúdo exposto no artigo O Reino do Barro, onde aprendemos que o quarto reino é dividido em três fases (canelas, pés e artelhos), e o império Romano estaria principalmente na ‘fase das canelas’. Seguindo essa linha, a volta de Jesus será o evento final da terceira fase (artelhos), quando então o quarto reino estará unificado. Em outras palavras, o mundo continua, na perspectiva do livro de Daniel, sob a égide do quarto reino, dividido em diversos reinos desde o colapso do império Romano, e, justamente prevendo esse cenário de falta de integração, a profecia teve o cuidado de ressaltar que a fase dos pés seria um reino dividido, mas que haveria de se unir no futuro, conforme já pontuado. Por outro lado, a provisão divina cercou o início e o fim do quarto reino: na ‘fase das canelas’, Jesus veio ao mundo, formou a Igreja e disse que voltaria. Quando? No fim da ‘fase dos artelhos’, momento em que finalmente exercerá o seu domínio sobre todos os povos. O messias esteve nos cobrindo desde o início do quarto reino e voltará para pôr fim a esse domínio maligno.
E se os romanos são o ferro na ‘fase das canelas’, quem seria o ferro na ‘fase dos pés’ e dos ‘artelhos’? Se, de um lado, já sabemos que o ‘reino do barro’ é uma alusão à Casa do Islã, podemos considerar, de outro, que o ferro aponta para a cristandade, abrangendo, na Idade Média, tanto os povos europeus quanto os bizantinos. No entanto, desde a Idade Moderna, como a região da Anatólia se tornou islâmica, o ‘povo do ferro’ ficou restrito aos europeus. Nesse sentido, as descrições de Daniel acerca da enorme força do ferro são totalmente compatíveis com o poder bélico dos europeus, especialmente quando consideramos os impérios modernos (português, espanhol, britânico, francês, alemão e italiano). Inclusive, o detalhamento das ações do ‘povo do ferro’ é retratado posteriormente na visão de Daniel 7 (conforme veremos nos artigos seguintes dessa série).
E como separaremos cada uma dessas três fases do quarto reino? Não é simples estabelecer uma data precisa para cada divisão da estátua e não devemos ser arbitrários. Por isso, em virtude da nossa defesa da coesão e coerência do livro de Daniel, um critério plausível seria considerar, como marco divisório de cada fase, profecias que constam no mesmo livro. Dessa forma, seguiremos o fluxo natural que o próprio livro, em seu conjunto, parece nos indicar.
Comecemos pela primeira fase (canelas). Ela parece ser a mais fácil de identificar, pois, por estar conexa diretamente com o bronze, deve ser um evento que marca o fim da supremacia grega e a ascensão dos romanos. Um marco indicativo está em Daniel 11:31, onde se alude aos eventos de profanação e destruição do Segundo Templo. A profanação primeiramente ocorreu quando Pompeu sitiou a cidade de Jerusalém, e, depois de três meses de cerco, invadiu o templo num dia de jejum. Isso foi no ano de 63 AEC, e a destruição somente ocorreu em 70 EC (trataremos disso com mais detalhes nos artigos a serem publicados sobre Daniel 11:31). Ora, como a invasão de Pompeu realmente marca o início do domínio romano em Israel, podemos escolher, com base em Daniel 11:31, o ano de 63 AEC como o início da ‘fase das canelas’.
Avancemos para o marco divisório entre a primeira e a segunda fases. Uma escolha coerente com o livro de Daniel seria pontuarmos o momento da aparição do elemento barro, pois ele só começa a existir justamente na ‘fase dos pés’. Isso nos aponta para Daniel 11:36, uma alusão à ascensão do profeta Muhamad, responsável por instalar o evento da abominação desoladora (cf. artigos O que é a abominação desoladora e Daniel 11:36). Por isso, sugerimos o ano de 632, ano da expansão islâmica.
A divisão entre a segunda e a terceira é diferente, pois não há um elemento novo nos artelhos que já não esteja nos pés. Existe, contudo, um caminho alternativo. Considerando que os artelhos são a última etapa da engrenagem do anticristo, isso nos indica que o ‘tempo do fim’ se inicia justamente nessa terceira fase. Essa expressão tem um sentido controverso nas Escrituras, mas, como estamos nos atendo mais especificamente ao livro de Daniel, temos um indicativo plausível de que esse início do fim se encontra na profecia de Daniel 8:13,26: o fim das 2.300 tardes e manhãs inauguraria esse período final, ou seja, o fim da ‘fase dos pés’. A visão de Daniel 8 se inicia na ascensão de Alexandre em 334 AEC, quando então os gregos começam sua campanha de conquistar os persas inaugurando o período em que o povo de Deus foi pisoteado pelo bode peludo da visão de Daniel 8. E, nesse sentido, veremos ainda em estudos específicos sobre a visão de Daniel 8, o espírito de Edom, desde a sua ascensão até sua queda, manteve-se de hegemônico por exatos 2300 anos (de 334 AEC até 1967). Ademais já vimos que nesse mesmo ano houve o cumprimento dos 1.335 anos (Dn. 12:12 c/c artigo Daniel 11:45), o qual sinaliza a queda final da abominação desoladora mencionada em Daniel 12:11 e descrita em Daniel 11:36-45. Vejamos agora um resumo das três fases do reino do ferro:
Fases do quarto reino | Estátua | Período |
1a fase | Canelas | 63 AEC-632 |
2a fase | Pés | 632-1967 |
3a fase | Artelhos | – parousia |
[1] HIPPOLYTUS OF ROME. Commentary on Daniel. Disponível em: https://www.newadvent.org/fathers/0502.htm. Acesso em 09 dez. de 2021.
[2] Referência Strong H7490. In: BÍBLIA ALMEIDA REVISTA E ATUALIZADA, COM NÚMEROS DE STRONG. Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.
[3] RABINOWITZ, Rabbi Chaim Dov. DA’ATH SOFRIM: Commentary to the Books of Daniel Ezra Nehemiah. New York: Moznaim, 2003, p. 44.
[4] RABINOWITZ, Rabbi Chaim Dov. DA’ATH SOFRIM: Commentary to the Books of Daniel Ezra Nehemiah. New York: Moznaim, 2003, p. 44.
[5] RABINOWITZ, Rabbi Chaim Dov. DA’ATH SOFRIM: Commentary to the Books of Daniel Ezra Nehemiah. New York: Moznaim, 2003, p. 44.