Os Sete Impérios Modernos que Devoraram o Mundo – Parte III

Essa é a última etapa da série acerca dos sete chifres da besta de Daniel 7. Se você tem nos acompanhado até aqui, já deve ter observado que a escala de horror só aumenta: os otomanos, portugueses e espanhóis – que foram os primeiros que largaram na frente nessa corrida da besta – devoraram povos e os despedaçaram, mas os britânicos e franceses foram além na crueldade em suas campanhas de extermínio dos povos subjugados. Doravante veremos o império colonial italiano e, especialmente, como o império alemão, apesar de ter um tamanho pequeno comparativamente aos outros, foi ainda mais maligno que os demais.  

1. Italianos

Após o colapso do império Romano Ocidental e as sucessivas invasões bárbaras, o território da península itálica foi fatiado em diversos reinos. Os latinos demoraram séculos para constituir o seu próprio estado moderno, quando, em 1861, houve sua unificação ou risorgimento. Após conturbadas guerras de independência, os italianos ainda conseguiram fundar, na esteira das outras potências europeias, seu próprio império colonial, que alcançou a Líbia, Eritreia, Somália, Etiópia e as ilhas do Dodecaneso. Em nossa abordagem, enfatizaremos o domínio italiano na Líbia e Etiópia e o governo fascista de Mussolini, por estarem conexos à marcha fulminante da besta.

Em 1911 houve uma atmosfera crescente de beligerância na Itália, servindo de cenário para que o primeiro-ministro, Giovanni Giolitti, decidisse invadir a Líbia. As motivações não eram claras. Aparentemente ele estava preocupado com uma possível invasão da Tripolitânia pela França, que ameaçaria os crescentes investimentos italianos na região. Outra razão pode ter sido a política doméstica: ele esperava que uma guerra bem-sucedida apaziguasse a opinião nacionalista e obrigasse os socialistas, ou, pelo menos, seis deputados do Parlamento a definirem sua posição, a favor ou contra o governo[1]. Houve, contudo, um motivo oficial. Os italianos alegaram haver uma hostilidade otomana contra suas atividades na Líbia. Em 26 de setembro de 1911, o governo italiano enviou um ultimatum ao sultão, que incluía sua intenção de ocupar a Tripolitânia e a Cirenaica (regiões que fazem parte da atual Líbia). Apesar de a presença otomana ter sido apenas de 20% da força invasora, o terreno dificultoso e a inexperiência italiana em combate pausaram a campanha, que só foi retomada em 1913[2]. A invasão, apesar de concretizada, custou caro aos cofres públicos e deixou a Itália atada a uma colônia que nunca seria completamente controlada. O cálculo de ganho político feito por Giollitti não se confirmou e o apoio ao seu governo desmoronou[3].

Seja qual tenha sido o motivo dessa guerra, percebemos que os líbios foram meros joguetes nas mãos dos italianos: invadir a Líbia, seja para conseguir adesão de alguns parlamentares, seja para salvar investimentos ante uma possível ameaça francesa ou otomana, mostra-nos uma centelha do nível de descaso e presunção de superioridade dos europeus ante os povos da África. Na invasão de Cirenaica, por exemplo, os italianos retrataram os guerrilheiros como religiosos fanáticos, consistindo apenas em guerreiros beduínos. Na verdade, a resistência não era baseada puramente em questões religiosas nem exclusivamente conduzida por beduínos, mas havia entre os nativos uma grande confiança no apoio tribal. Por conta de sua participação na I Guerra Mundial, em 1915 a posição italiana na Líbia se deteriorou e só se recuperou após o colapso do império Otomano, quando foi prometida à Itália a soberania sobre a região, mas pouco os italianos puderam fazer por conta de problemas econômicos que o país enfrentava no período.

A face bestial do império Italiano revelou-se mais claramente na Líbia a partir de 1922, quando Mussolini ascendeu ao poder. Os italianos já haviam iniciado uma campanha de reconquista da Líbia em 1921[4] e prosseguiu sob o governo fascista. O general Rodolfo Graziani causou enorme devastação ao país, forçou um grande percentual da população de Cirenaica a entrar em campos de concentração e dizimou os suprimentos locais. Foi uma campanha de subjugação brutal e implacável. Uma fonte confiável aponta que o número de mortos entre 1912 e 1943 foi de 250.000 a 300.000 de uma população estimada entre 800.000 e 1.000.000[5]. A oposição líbia foi destroçada e nem os inocentes eram poupados. Tais atrocidades praticadas pelos italianos aludem ao comportamento da besta, que fazia em pedaços os povos e esmagava aquilo que sobejava (Dn. 7:19).

A Líbia foi tratada com uma saída potencial para o excedente populacional da Itália. Entre os anos de 1914 e 1929, 180.000 acres de terras agrárias foram deixados para produção dos colonos italianos. O foco dos investimentos mudou rapidamente quando os fascistas adotaram programas de subsídios mais intensos para constituir moradia de famílias campesinas, cada qual com sua própria e pequena fazenda. Entre 1936 e 1942, a Itália gastou dois terços de seus investimentos destinados à Líbia em recuperação de terras e desenvolvimento agrário. Da perspectiva da população nativa, a presença colonial os excluiu sistematicamente do progresso e investimentos no país. O primeiro encontro com os mecanismos de um estado moderno foi de uma administração autoritária e dominante que poderia ser usada, aparentemente sem contrabalanço, para subjugá-los e desapossá-los de suas terras[6]. Era um retrato apocalíptico. A força dos líbios estava tão despedaçada que a independência do país, alcançada em 1951, foi resultado de anos de jogos competitivos de disputa interna e internacional. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha aparentemente concluíram que uma Líbia independente serviria melhor a seus interesses, pois os líbios poderiam estabelecer bases militares e prometer-lhes acesso a elas, o que não seria possível se a Líbia ficasse sob a tutela das Nações Unidas.[7]

Vejamos agora o caso da Etiópia. O domínio italiano teve características similares às da Líbia, mas foi de menor duração por conta da resistência dos nativos. Mussolini estava determinado a vingar a derrota vergonhosa de Aduá, em 1896, quando os etíopes conseguiram evitar a invasão italiana. Acreditava-se que o lugar ao sol da Itália não ficaria completo sem a possessão da Etiópia. Mussolini encontrou um pretexto para a conquista do país: o choque incidental entre a escolta etíope da fronteira anglo-etíope com tropas italianas da Somália em Walwal[8].

A guerra foi custosa. Mussolini enviou mais de meio milhão de soldados e trabalhadores para a África Oriental. No campo de batalha, a marcha bestial foi cruelmente demonstrada contra os etíopes: os italianos lançaram bombas de gases venenosos sem que houvesse, sequer, uma situação desfavorável que justificasse um ato tão brutal. Além disso, o ataque aéreo dos italianos evitou que os etíopes  suas táticas favoritas de ataque surpresa seguida de rápida ocultação. Isso significa que, dada a discrepância de tecnologia militar, a vitória nessa batalha poderia dispensar o uso da atrocidade, mas, como já aprendemos da visão de Daniel, a besta, em sua segunda marcha ainda mais feroz, tem uma natureza realente muito terrível (Dn. 7:19). Os etíopes, por sua vez, não tinham sequer armamento pesado e pouquíssimas munições[9]. Essa discrepância de forças, como já estudamos, faz parte da própria marcha da besta.

Assim como ocorreu na Líbia, a conquista foi logo seguida por imigração. Entre 1935 e 1939, cerca de 200.000 italianos se voluntariaram ou foram recrutados para trabalho assalariado temporário na África Oriental. A justificativa para imigração, desenvolvimento urbano e construção de estradas foi política e militar, ao invés de econômica. Os custos foram arcados pelo contribuinte italiano. Algumas centenas de colonos italianos instalaram-se com grandes despesas em fazendas mecanizadas, mas não conseguiram produzir nem mesmo as 8.000-9.000 toneladas de trigo que os etíopes comercializavam anualmente antes de 1935[10]. Foi um fiasco econômico.

Apesar de ter esmagado as forças etíopes, a administração italiana era muito irregular e a resistência nativa foi hábil o bastante para lograr a independência em pouco tempo. A insurreição generalizou-se em 1937 e, em resposta, Graziani, vice-rei, prontamente instaurou um regime de terror que pretendia extinguir todo sentimento de nacionalidade etíope. Milhares de africanos foram mortos, incluindo clérigos e pessoas que adquiriram habilidades técnicas. Contudo, a medida não foi efetiva e os italianos tiveram que propor acordos de paz com líderes rebeldes, e a situação piorou ainda mais, quando os etíopes receberam apoio da Inglaterra, por ocasião da II Guerra Mundial, em razão de a Itália ter se comprometido com a Alemanha nazista. Os britânicos estavam a favor do retorno do rei etíope Haile Sellassie, o que foi aceito pelos patriotas. Como resultado, os etíopes conseguiram se libertar do jugo da Itália, e, com a ajuda do império Britânico, restauraram o seu estado no período pré-guerra com sua independência política e integridade territorial praticamente intacta[11].

Um último aspecto bestial do império Italiano está retratado no governo fascista instaurado por Mussolini. Vejamos algumas características que guardam conexão com a besta de Daniel 7:19: os fascistas buscavam a criação de uma identidade coletiva por meio da propaganda e, eventualmente, da guerra. A ideia era construir uma comunidade nacional na Itália, e um novo tipo de italiano com novos valores e comportamentos. Seu objetivo foi substituir o fraco sistema parlamentar italiano por um regime mais estimulante, construído em torno de mitos e símbolos[12]. A mentalidade do fascismo era essencialmente pagã: o novo homem deveria ser guerreiro, viril, patriótico, disciplinado e austero, ao passo que a mulher seria leal e obediente, a guardiã do lar. O modelo foi encontrado na Roma dos Césares. O culto à Roma Antiga era uma tentativa de fabricar uma nova identidade nacional[13].

E, seguindo a mesma esteira de muitos Césares, que se consideravam divinos e exigiam o culto ao imperador, os fascistas buscaram forjar um consenso por meio do “culto ao Duce”, engrandecendo o indivíduo heroico. Depois de 1925, Mussolini foi submetido a um processo de quase deificação, fortemente incentivado pela Igreja Católica, que conseguiu se beneficiar com o Tratado de Latrão, o qual conferia ao Vaticano o privilégio de se tornar um Estado soberano, além de uma grande soma de dinheiro para compensar perdas de territórios papais em 1860 e 1870. O apoio envolveu também jornalistas, candidatos e defensores do regime. Durante a década de 1930, o “culto ao Duce” alcançou uma dimensão extraordinária. Os aforismos de Mussolini que expressavam os ideais fascistas estavam pintados em todos os lugares: “acreditar, obedecer, lutar”, “melhor um dia como um leão do que cem anos como uma ovelha”. O “culto ao Duce” conseguiu gerar um enorme entusiasmo e uma afeição popular por Mussolini, conferindo uma determinada coesão ao regime, e se tornando, até mesmo, a sua religião oficial. O resultado disso foi perigoso: Mussolini foi colocado acima do governo e do partido fascista. Inclusive a ineficiência de sua gestão, a corrupção e os problemas sociais do país não eram atribuídos a ele: era culpa dos funcionários públicos e ministros, considerados como traidores do grande líder[14]

Foi nesse ambiente de delírio nacional em torno da figura de seu ‘líder divino’ que se deu a expansão do império Italiano contra a Etiópia, logo após a campanha brutal na Líbia. O resultado foi desastroso. As despesas vultosas da operação militar na Etiópia, as sanções econômicas da Liga das Nações, a perda de credibilidade na comunidade internacional empurraram a Itália para os braços da Alemanha, o que fomentou também a legislação antissemita em 1938[15].

O antigo culto ao imperador, e suas versões modernas, como “culto ao Duce” ou ao Führer, carrega a natureza essencialmente maligna da besta, ou o espírito de Edom, que representa o quarto reino visto por Daniel: a vontade de esmagar judeus e as testemunhas de Jesus e de pisotear a terra santa. E foi justamente embalado por esse culto à personalidade do líder que Mussolini, mas principalmente Hitler, perseguiu cruelmente os judeus.

Figura 1 – Império Italiano

Império Italiano na sua máxima extensão. Territórios conquistados antes da Segunda Guerra Mundial estão em vermelho, enquanto os ocupados entre 1940 e 1943 estão em rosa.

Fonte: Wikipedia[16]

2. Os alemães

Os alemães também se lançaram tarde na corrida imperialista. Veremos primeiramente como se formou a onda crescente de espírito bélico na Alemanha, e como as crenças compartilhadas, desde a formação do seu estado soberano até o fim da II Guerra Mundial, ajudaram a embasar uma política beligerante que desencadeou a fundação de colônias na África, duas guerras mundiais e o holocausto.

 A unificação alemã ocorreu apenas em 1871, mesmo antes do cessar-fogo da guerra contra Napoleão III, quando, no Palácio de Versalhes, os príncipes alemães proclamaram Guilherme I, o ‘príncipe metralha’, fundando o império da ‘pequena’ Alemanha[17]. Esse acontecimento foi seguido de uma onda de fervor patriótico que encorajou alguns empresários, banqueiros e missionários a defenderem o estabelecimento de um império colonial. O rápido crescimento da indústria nacional dependia de países estrangeiros ou colônias para o fornecimento de matéria-prima e gêneros alimentícios, o que fomentava argumentos econômicos para aquisições além-mar[18]. Bismarck se opôs, mas logo cedeu. Em apenas dois anos, os alemães adquiriram quatro territórios na África e muitas ilhas do Pacífico[19].

Figura 2 – Império Colonial Alemão

Fonte: Wikipedia[20]

A partir de 1878, quando Bismarck rompeu definitivamente com os liberais, iniciando o período chamado de ‘segunda fundação do império’, a Alemanha consistia em uma sociedade classista, na qual os conflitos sociais se agravavam e eram suprimidos de forma autocrática pelas autoridades. Mesmo após a saída de Bismarck, essa política de concentração de conservadores prosseguiu e começou a se instalar um nacionalismo cada vez mais agressivo que exigia a proeminência internacional dos alemães. Para isso, era necessário desenvolver um império colonial e uma política de frotas expansionista, dos quais os judeus e socialistas eram os obstáculos mais perigosos às aspirações da Alemanha[21].

Durante a era de Bismarck, o avanço imperialista foi comedido.  Ele se esforçou por manter acordos de paz entre o império Alemão, a Áustria-Hungria e a Rússia, de forma a evitar o perigo de um agravamento da situação nos Bálcãs, bem como afastar a França da Rússia, e alargou a aliança alemã-austríaca à Itália, formando a tríplice aliança (1882), reduzindo os riscos de conflitos na região oriental dos Alpes. A engenhosidade da política externa de Bismarck foi, contudo, abandonada logo após a sua saída. Seus sucessores negligenciaram os princípios de sua política externa e defenderam uma postura mais agressiva para a concretização dos objetivos imperialistas, corroendo aos poucos o equilíbrio de poder e a paz na Europa Central. Eles ajudaram a criar uma constelação de poderes que fez com que a maioria dos envolvidos considerasse a guerra como uma solução inevitável. O resultado disso foi o isolamento político da Alemanha, que foi entendido como um ‘cerco’ que se apertava gradativamente, dando azo a uma propaganda de autoafirmação cada vez mais ruidosa. Além do ‘cerco’ externo, acreditava-se também em ameaças a partir de dentro, oriundas de uma burguesia instruída que desrespeitava as autoridades tradicionais, pondo em risco a existência do povo alemão. Acreditavam ainda que uma grande nação deveria cultivar as virtudes militares dando azo à exaltação da juventude, que carregaria o futuro, um poder de renovação para a cultura, e de que era necessário criar um ‘homem novo’[22].

Voltemos agora o nosso olhar para a administração colonial alemã. Durante dezesseis anos após a saída de Bismarck, o interior das colônias foi explorado e muitas guerras foram travadas para estabelecer a autoridade alemã e, apesar de muitos desapontamentos com os desenvolvimentos das colônias, o novo Kaiser, Guilherme II, estava ansioso para assegurar ainda mais possessões mundo afora. Na década de 1890, muitas expedições foram enviadas para persuadir chefes a assinar tratados de proteção ou punir nativos que tinham matado europeus ou destruído suas propriedades.

O caso do esmagamento da tribo Miang, em Camarões, ilustra bem como os alemães impuseram sua autoridade contra povos insubmissos da África. A celeuma começou quando o povo miang saqueou um depósito privado dos alemães. Em resposta, uma força policial liderada pelo explorador Morgen foi enviada para punir os nativos num ataque surpresa na vila Malende. Morgen solicitou ao governador medidas mais radicais, o que foi atendido pelo envio de oitenta homens liderados por Dominik. Dessa vez, o ataque ocorreu na vila fortificada de Mpaki: a terra e o seu cultivo foram destruídos, seus moradores, expulsos, e o povo teve o acesso bloqueado ao rio Abo – rota comercial até a costa. Os miangs, após serem premidos pela fome e doenças, vivendo ao céu aberto, aceitaram o domínio alemão[23].

Outro caso ilustrativo foi o extermínio sistemático dos hereros. Os nativos protestaram contra a administração colonial acerca da invasão dos fazendeiros alemães sobre suas terras, os quais os pressionavam a trabalhar no campo dos alemães e se valiam de métodos brutais para o pagamento de débitos. Os hereros mataram 123 homens brancos e atacaram ranchos e guarnições em apenas um dia. Os nativos foram batidos em agosto de 1904. Os hereros perderam tudo como resultado da guerra (homens, gado e a terra); sua liberdade foi perdida e o espírito, quebrado. A maioria dos sobreviventes estava doente e sem assistência. O novo governador conclamou os hereros a desistirem das armas e serem protegidos pelos missionários. Isso, contudo, não significava que as demandas dos hereros fossem atendidas: nos anos seguintes ao armistício, a subjugação dos africanos e sua exploração como uma classe trabalhadora permaneceu como a base da política alemã no Sudoeste da África[24]. Houve ainda outros casos de esmagamento brutal de nativos e de escândalos praticados nas colônias que poderíamos mencionar[25], mas já é possível perceber que o modelo bestial da administração era condizente com a imagem muito terrificante de Daniel 7:19: ou os nativos se deixavam ser devorados (submetiam-se ao domínio estrangeiro), ou, caso sobejassem (recusassem o jugo), eram esmagados como insetos.

Vejamos agora como seu deu a formação do ‘espírito de 1914’ que sacudiu a Alemanha e envolveu o mundo em uma espiral de destruição e horror em pouco mais de vinte anos (1914-1945). O horizonte mental dos líderes políticos era formado essencialmente pelo período pré-industrial, predominando formas autoritárias de chegar ao poder e de exercê-lo, havendo também um intercâmbio entre o Estado autoritário e a burguesia. Mesmo considerando, de um lado, as mazelas que inquietavam o espírito alemão, como crises econômicas, de outro, os fortes progressos na industrialização, a migração para as zonas urbanas e as alegadas ameaças dos ‘inimigos do império’ fizeram os alemães experimentaram um ambiente de otimismo e unidade nacional, vivido quase como um delírio, o qual, apesar de todas as contradições existentes, se apoderou dos alemães, permitindo um apoio inicial amplo aos objetivos bélicos do país. Acreditava-se que esse ambiente seria uma prova de que os alemães seriam capazes de alcançar coesão, patriotismo e força nacional, mesmo sem democracia. Essa ideia foi efêmera para alguns, mas para outros se transformou numa crença duradoura, exaltada religiosamente e transformada num mito de que a Alemanha possuía uma missão na história mundial. Mesmo após a derrota da I Guerra Mundial, essa crença permaneceu de forma que levou muitos a presumir, cheios de expectativas otimistas, que só mais uma guerra poderia atuar como um banho de purificação e trazer a salvação[26].

Quando a guerra terminou, o império alemão chegou ao fim. Em seu lugar fundaram a República de Weimar, um governo democrático, mas que se revelou muito frágil – houve onze governos nos dez anos seguintes a 1923 – devido a crises políticas e econômicas, além de pressão estrangeira exigindo indenização pelos estragos da guerra. As exigências das nações vencedoras, no Tratado de Versalhes, impuseram também condições muito duras, e, sobretudo, colocaram os alemães como os principais culpados da guerra, o que ajudou a fomentar um ódio generalizado contra a ‘paz imposta’. Nas duas décadas seguintes o ponto de referência do pensamento, da percepção da maioria das pessoas foi o de derrota, predominando uma rejeição interior da paz[27].

O Estado buscava cada vez mais se assenhorear das mídias e havia muitos que aceitaram soluções autoritárias para contornar a crise que o país vivia, dando azo a uma catástrofe que se espalhou por todo o mundo[28].  E foi nesse ambiente de crise intensa e de não aceitação da paz que Hitler assumiu o poder em 1933, trazendo consigo uma dupla mudança radical: uma estratégia de reconstituição radical da sociedade através de conceitos como o de ‘sangue e solo’, ‘espaço vital no Leste’ e o direito de dominação da ‘raça ariana’ e, simultaneamente, uma modernização forçada nos meios de comunicação social, na economia e em diversos campos de ação sociopolíticos[29].

A ditadura nacional-socialista foi muito popular e tinha como elemento unificador uma combinação de ideologia e dinâmica social baseada no binômio carisma (associando, por meio de propagandas intensas, a figura de Hitler à imagem carismática do Führer, que significa ‘líder’) e terror. Ao final, foram a dinâmica social e o terror que se tornaram os elementos dominantes: o Parlamento foi logo dissolvido, a liberdade de imprensa foi restringida e iniciou-se uma ‘limpeza’ dos aparelhos de Estado, entre outras medidas. Em 1935 as ‘Leis de Nuremberg’ discriminavam os ‘elementos de outras raças’, sobretudo os judeus. A palavra-chave ‘limpeza’ desempenhou um papel central para a eliminação de todos os pretensos adversários. A perseguição intensificou-se ainda mais contra os dissidentes durante a fase da guerra, que eram alvos de medidas brutais, e, aqueles que não eram da raça ariana, em especial os judeus, foram atacados, primeiramente com restrições de direitos até o ponto culminante de sua eliminação completa. Em resumo, toda a sociedade alemã foi apanhada por uma rede complexa de organizações nacional-socialistas com a promessa de que seria criado um ‘homem novo’[30] (discurso que tem sua raiz mesmo antes da I Guerra Mundial), e quem não se encaixava nesse sistema era sistematicamente expurgado pelos ‘mecanismos de limpeza’. Esse foi o ‘alinhamento’ impetrado pelo partido nacional-socialista, forte o bastante para penetrar todas as instituições existentes no país, com exceção da Igreja Católica, que conseguiu gozar de alguma margem de liberdade graças a uma concordata assinada entre Hitler e o Vaticano em 1933.

O Estado instaurou, por meio de diversos instrumentos (SA, SS e a Gestapo), um sistema de vigilância continuamente aperfeiçoado e conclamava também o envolvimento dos ‘compatriotas’, criando uma pressão quase onipresente no sentido de exposição à influência e prova de lealdade ao regime. Em 1939, a população civil ficou sujeita a uma escassez crescente até que o Estado passou a racionar os bens de consumo. Isso, contudo, não provocou um frenesi geral porque havia apelos por afirmações pacíficas, um mundo de ‘boa aparência’ orientado pelo otimismo e entretenimento rápido (filmes, operetas etc.), de forma a forjar a força através da alegria, e assim criavam no cidadão uma mistura de medo e predisposição para se deixar atordoar pela pompa e promessas fabulosas[31]. Durante a guerra, os instrumentos utilizados não eram apenas vigilância, ameaças com os campos de concentração e o entretenimento, mas buscava-se também criar um clima de normalidade buscando evitar problemas de abastecimento à população[32].

Embora o antissemitismo não tivesse se generalizado na população, a perseguição contra os judeus, que começou em 1938, foi aceita pela opinião pública quase sem protesto. Antes disso, o objetivo primordial era ‘apenas’ expulsar os judeus da Europa Central no sentido de ser essa uma ‘solução global’ territorial da questão judaica, que ainda estava no centro dos planos nacional-socialistas, período em que ainda eram ventiladas ideias como deportação geral para Madagascar ou Sibéria. No entanto, a evolução dos acontecimentos tomou um rumo diferente e passou-se para uma ‘solução final física’[33]. A ideologia racista abraçada pela Alemanha foi central durante a II Guerra Mundial e se tornou, inclusive, mais importante que as necessidades estratégicas militares, chegando-se a uma situação de insistência fanática mesmo ante a catástrofe iminente. A maioria dos chefes militares e economistas defendia esses objetivos de guerra híbridos. A propaganda nacional-socialista apoiava a guerra contra o liberalismo ocidental, dominada pelos judeus, e contra o bolchevismo do leste, ‘com espírito judeu’, como uma medida defensiva e necessária, o que ajudou a desencadear uma guerra de conquista desenfreada. A guerra no Leste existia com o propósito de uma destruição total do adversário de outra ‘raça’, uma erradicação ou escravização total dos povos subjugados e a conquista de um novo ‘espaço vital’ sobre o qual se fundaria o ‘Império da Grande Germânia’[34].

O delírio não durou muito tempo. Hitler, no auge do seu poder em 1940-1941, declarou guerra aos EUA, mas já nesse tempo os alemães estavam começando a sofrer revés na Rússia, que fora completamente subestimada. O plano de Hitler era destruir rapidamente a União Soviética antes que os EUA entrassem na guerra, enquanto eliminaria simultaneamente a Inglaterra – ou a forçaria a um acordo de paz –, e, em seguida, juntamente com o Japão, vencer os EUA. Ele apostou numa guerra do ‘tudo ou nada’, arriscando todas as fichas em apenas uma carta. Não demorou, contudo, para surgirem os reveses de Estalingrado, em 1943. No entanto, isso não freou o ímpeto alemão de prosseguir com a guerra. Os nacionais-socialistas, cegos na sua ideologia e propaganda racista, arrastaram para a morte, juntamente consigo mesmos, tanta gente quanto possível. Pelo menos 10 milhões de civis foram mortos em matanças deliberadas e, entre eles, cerca de 6 milhões de judeus[35].

 Mesmo em face do desastre iminente, os alemães foram até o fim. Eles seguiram seu destino funesto como Adrian Leverkhün, protagonista de Dr. Fausto, obra-prima de Thomas Mann, que pactuara irremediavelmente com o demônio e não poderia voltar atrás, mesmo à custa de sua própria vida. O fim trágico de Adrian figurava a da própria nação:

a essa altura, a Alemanha, as faces ardentes de febre, no apogeu de selvagens triunfos, cambaleava, ébria, a ponto de conquistar o mundo, graças a um pacto ao qual tencionava ser fiel e assinara com seu próprio sangue. Hoje, cai de desespero em desespero, cingida de demônios, cobrindo um dos olhos com a mão e cravando o outro num quadro horroroso. Quando alcançará o fundo do abismo?[36]

Um quadro de mesma natureza será pintado mais uma vez na era escatológica quando as nações, impulsionadas por uma aliança entre o anticristo, falso profeta e o dragão, serão lançadas para uma guerra de ‘tudo ou nada’ contra Israel.

Por fim, analisemos um pouco mais de perto a tragédia do holocausto que também guarda conexões com o comportamento da besta de Daniel 7. O fenômeno é de difícil explicação, mas pode ser compreendido a partir da perspectiva do paradoxo da ordem e do caos vivida pela modernidade, conforme nos ensina Bauman: o Estado moderno buscava uma ordem, uma solidez, e deveria ser gerido de forma análoga ao trabalho de um jardineiro: cultiva o que precisa ser cultivado e, impiedosamente, elimina as ervas daninhas. A crença de que o Estado deveria ser formado por uma sociedade sadia e ordeira era levado ao extremo. Um caso ilustrativo foi o cientista F. Kallman, que sugeriu a esterilização compulsória dos portadores de heterozigotos do ‘gene anormal de esquizofrenia’, o que afetaria 18% da população local[37]. Segundo Bauman[38], o holocausto é resultado da própria modernidade:

Os casos mais extremos e bem documentados de “engenharia social” global na história moderna (aqueles presididos por Hitler e Stalin), não foram nem explosões de barbarismo (…) nem o preço pago por utopias alheias ao espírito da modernidade. Ao contrário, foram produto legítimo do espírito moderno, daquela ânsia de auxiliar e apressar o progresso da humanidade rumo à perfeição que foi por toda parte a mais eminente marca da era moderna (grifos nossos). Se


[1] DUGGAN, Christopher. História Concisa da Itália. São Paulo: Edipro, 2016 (Série História das Nações), p. 214.

[2] VANDEWALLE, Dirk. A History of Modern Libya. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 26.

[3] DUGGAN, Christopher. História Concisa da Itália. São Paulo: Edipro, 2016 (Série História das Nações), p. 214.

[4] VANDEWALLE, Dirk. A History of Modern Libya. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 29.

[5] VANDEWALLE, Dirk. A History of Modern Libya. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 30-31.

[6] VANDEWALLE, Dirk. A History of Modern Libya. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 32-34.

[7] VANDEWALLE, Dirk. A History of Modern Libya. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 39.

[8] CAULK, Richard. Ethiopia and the horn. In: ROBERTS, A.D (Ed.). The Cambridge History of Africa. Vol.7. UK: Cambridge University Press, 2008, p. 734.

[9] CAULK, Richard. Ethiopia and the horn. In: ROBERTS, A.D (Ed.). The Cambridge History of Africa. Vol.7. UK: Cambridge University Press, 2008, p. 734-735.

[10] CAULK, Richard. Ethiopia and the horn. In: ROBERTS, A.D (Ed.). The Cambridge History of Africa. Vol.7. UK: Cambridge University Press, 2008, p. 737.

[11] CAULK, Richard. Ethiopia and the horn. In: ROBERTS, A.D (Ed.). The Cambridge History of Africa. Vol.7. UK: Cambridge University Press, 2008, p. 739-741.

[12] DUGGAN, Christopher. História Concisa da Itália. São Paulo: Edipro, 2016 (Série História das Nações), p. 249-250.

[13] DUGGAN, Christopher. História Concisa da Itália. São Paulo: Edipro, 2016 (Série História das Nações), p. 255-256.

[14]DUGGAN, Christopher. História Concisa da Itália. São Paulo: Edipro, 2016 (Série História das Nações), p. 250-254.

[15] DUGGAN, Christopher. História Concisa da Itália. São Paulo: Edipro, 2016 (Série História das Nações), p. 261-263.

[16] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_Italiano. Acesso em 15 de dez. 2021.

[17] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 259.  

[18] HENDERSON, W.O. The German Colonial Empire: 1884-1919. Great Britain: Frank Class, 1993, p. 31.

[19] HENDERSON, W.O. The German Colonial Empire: 1884-1919. Great Britain: Frank Class, 1993, p. 37.

[20] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_colonial_alem%C3%A3o. Acesso em 15 de dez. 2021.

[21] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 270-271.

[22] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 274-279.

[23] HENDERSON, W.O. The German Colonial Empire: 1884-1919. Great Britain: Frank Class, 1993, p.77-78.

[24] HENDERSON, W.O. The German Colonial Empire: 1884-1919. Great Britain: Frank Class, 1993, p.78-81.

[25] Cf. HENDERSON, W.O. The German Colonial Empire: 1884-1919. Great Britain: Frank Class, 1993, p. 81-92.

[26] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 266-267.

[27] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 298, 303-306.

[28] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 288.

[29] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 311-313

[30] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 310-313.

154 REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 318-319.

[32] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 330-331.

[33] REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et al. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 320-321.

[34]REULECKE, Jürgen. Do Congresso de Viena ao início da I Guerra Mundial (1814-914). In: DIRLMEIER, Ulf; GESTRICH, Andreas et all. História Alemã: do século VI aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2020, p. 325.

[35] GILBERT, Martin. A História do Século XX. 3.ed. São Paulo: Planeta, 2020, p. 350.

[36] MANN, Thomas. Doutor Fausto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p.715.

[37] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 37.

[38] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 38.

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