Jesus e o Messias Leproso na Tradição

 

Os milagres que Jesus realizou em seus três anos e meio de ministério foram tantos que, segundo o apóstolo João, no mundo inteiro não caberiam livros que seriam escritos (Jo. 21:25). Diante disso, podemos trabalhar com a hipótese de que, quando da escrita dos evangelhos, houve algum critério na eleição dos relatos de cura. Em nosso estudo, vamos estudar qual seria a provável razão de os evangelistas terem mencionado a cura de leprosos. Ela aparece uma vez nos livros de Mateus e Marcos, e duas vezes em Lucas. Para isso, vamos estudar o tema da lepra na Torá, no livro dos Profetas, e sua conexão com as profecias messiânicas

1. A lepra em Moisés

A lepra aparece na Torá pela primeira vez como um sinal de maravilha que Moises deveria apresentar ao povo de Israel:

“Disse-lhe mais o SENHOR: Mete, agora, a mão no peito. Ele o fez; e, tirando-a, eis que a mão estava leprosa, branca como a neve. 7 Disse ainda o SENHOR: Torna a meter a mão no peito. Ele a meteu no peito, novamente; e, quando a tirou, eis que se havia tornado como o restante de sua carne”. (Êxodo 4:6-7)

Segundo os sábios, a cura miraculosa das mãos de Moisés é aludida na profecia de Isaias 1:18: “Vinde, pois, e arrazoemos, diz o SENHOR; ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã”. (Isaias 1:18). Eles consideram que essa profecia alude ao Messias: ele purificará os pecados de forma miraculosa, assim como a lepra foi curada das mãos de Moises. Como sabemos disso? Porque a expressão ‘brancos como a neve’ se conecta a Moisés, que se purificou da lepra de forma miraculosa. Ademais, eles arrazoam que a expressão vermelho como o carmesim se tornando branco como a lã alude ao cerimonial do Yom Kippur: a lã carmesim ficava miraculosamente branca quando o bode para Azazel era arremessado (Yoma 39a, 39b). Era o sinal do perdão de Deus sobre seu povo. O Messias trará o mesmo.

2. O sacrifício de purificação dos leprosos

O sacrifício para purificação do leproso tinha os seguintes elementos (Lev.14):

  1. Dois pássaros
  2. Madeira de cedar
  3. Hissopo
  4. Pote de barro

Em Vayikra Rabbah 16:1, os sábios ensinam que a razão de ser um pássaro é porque assim como o pássaro faz muito barulho com seu gorjeio, a lepra tem sua origem no pecado da língua. O pássaro representa a pessoa que fala demais. Em resumo, a maledicência, fofoca etc. seriam as principais causas da lepra.

Não apenas isso. O pássaro pode ser uma pomba ou uma rolinha. A palavra ‘pássaro’ (tsippôr) tem o mesmo valor numérico que ‘este é o messias’

זה משיח – este é o Messias: 7 (zayin) + 5 (He) + 40 (em) + 300 (shin) + 10 (yod)+ 8 (het) = 370.

צפר – ave (tsippôr): 90 (tsade) +   80 (he) + 200 (resh) = 370

Os outros símbolos teriam ainda os seguintes significados. A lã e o hissopo (talvez o tomilho) representam humildade (Rashi). A madeira de cedro simboliza o orgulho (Arachin 16A) e o vaso de barro seria o corpo humano.

Interessante notar que, no episódio da crucificação percebemos os mesmos elementos do sacrifício de purificação dos leprosos. Assim como na Torá dois pássaros eram escolhidos, um era solto e outro sacrificado, o mesmo ocorreu no Novo Testamento, quando Pilatos perguntou: “a quem quereis que eu vos solte, a Barrabás ou a Jesus, chamado Cristo?” (Mateus 27:17). Jesus equivale ao pássaro sacrificado, e Barrabás, o solto.

“O vaso de barro, cedro e o hissopo também aparecem nos evangelhos: “Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre uma esponja e, fixando-a num caniço [cedro?] de hissopo, lha chegaram à boca. Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito”. (João 19:29-30).

Seriam esses elementos uma mera coincidência? Se a morte vicária de Jesus alude ao sacrifício de purificação dos leprosos, então teríamos que assumir que Jesus seria uma espécie de leproso? É o que veremos na seção seguinte.

3. A vinda do Messias leproso

Os sábios do Talmude nos dizem que o Messias virá quando o mundo inteiro estiver coberto de lepra (Sanhedrin 98a). Lembre-se que, para os sábios, a lepra é uma doença que tem sua origem em pecados específicos, especialmente aqueles ligados à língua. Então, o mundo coberto de lepra simboliza uma humanidade cheia de maledicência. Na mesma esteira, ao comentarem Lev. 13:3 – ‘se a lepra cobriu toda a sua carne, declarará limpo o que tem a mancha; a lepra tornou-se branca; o homem está limpo”. (Levítico 13:13) – eles comentam que “o filho de Davi não virá enquanto o reinado inteiro [não] se transformar em heresia” (Sanhedrin 97a). Eles defendem que assim como o leproso é declarado limpo quando todo seu corpo fica branco [ou seja, todo tomado de lepra], o mundo será limpo quando a iniquidade [a lepra] tomar toda a terra.

Os sábios extraíram essa ideia de um mundo totalmente leproso a ser purificado pelo Messias não apenas de suas meditações sobre Lev.14. Na análise da famosa profecia de Isaias 53, eles concluíram que o próprio Messias seria chamado de ‘o Leproso’. Primeiramente vamos ler Isaías 53:2-5:

não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado[Messias Leproso], e dele não fizemos caso. Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades” (Isaías 53:2-5)

Ao aludirem a essa passagem, os sábios do Talmude contam uma anedota de que o Rabi Iehoshua ben Levi encontrou o profeta Elias e perguntou onde poderia encontrar o Messias, então o profeta respondeu: “o Messias está no portão da cidade … ele está sentado em meio a mendigos que padecem de doenças”. Rashi comenta que isso se baseia na profecia de Isaías 53, que alude ao Messias como “aflito, ferido de Deus e oprimido” (Isaías 53:4). E, quanto ao nome dele, consta na mesma passagem que o Messias será chamado de Metzorá (leproso).

Para quem não está habituado com a exegese dos tanaítas, pode estranhar como foi que eles associaram o messias com a figura do leproso. Normalmente os sábios, quando analisam os textos proféticos, ou, na verdade, qualquer trecho das Escrituras, costumam fazer um trabalho de intertextualidade entre a passagem em análise e a Torá. Então, ao lermos Isaias 53:2-5, devemos nos perguntar: existe alguém que na Torá carrega as características aqui descritas? Em outras palavras, quem na Torá pode ser considerado como ‘sem formosura, oprimido, aflito, homem de dores, rejeitado entre os homens? A resposta estaria na figura do leproso. Daí vem a conexão.

No entanto, por que o Messias haveria de ter essa ligação com a figura do leproso? O texto de Isaías 53 destaca a figura do ‘servo sofredor’. O título de ‘servo do Senhor’ (Isaias 53:11) é considerado, na literatura rabínica, como o mais honorifico que um fiel pode receber (Sifrei Devarim 357). Ele foi dado a Moises (Deut. 34:5), Abraão (Salmos 105:6), Davi (II Samuel 7:5), profetas em geral  (Jer. 7:25). Não é sem razão, portanto, que, no contexto de Isaias 53, seja uma alusão ao Messias, que não poderia receber título menor.

Em Isaias 53, esse servo é retratado como aquele que tem uma ligação profunda com todo o povo de Deus, mas especialmente com a ovelha perdida, que seriam aqueles que estão fora da comunidade. Por isso que o texto de Isaías coloca o Messias como um ‘homem de dores’, cheio de chagas e que leva a chaga dos outros. Ora, se o Messias se conecta a todos, significa que ele seria capaz de alcançar tantos os que estão dentro ou aceitos, quando aqueles que estão expulsos da comunidade, no caso, os leprosos.

Então, quando o talmude chama o Messias de ‘o leproso’ está destacando a missão messiânica de se conectar com todos, carregar a dor, as doenças, o sofrimento de todo o povo de Deus, expiando com seu padecimento os pecados do povo de Deus. E, nesse sentido, a própria ideia de que o justo pode expiar pelos pecados dos outros encontra amparo também em outras passagens talmúdicas (Sanhederin 39a, Moed Katan 28a).

Conclusão

Pelo exposto nas seções anteriores, já conseguimos vislumbrar que a associação do Messias à imagem de um servo sofredor está totalmente conexa com a figura do leproso. Seguindo essa linha, não poderíamos esperar senão um Messias que buscasse se conectar o máximo possível, não se esquecendo dos rejeitados e se fazendo de ferido para alcançar os feridos, tal como consta no próprio relato talmúdico (Sanhedrin 97a-98b). Considerando que esse era, ao menos em parte, a expectativa daquela geração, não é razoável que os evangelistas priorizassem em seu relato as diversas curas feitas por Jesus? E, dentre essas, não poderia faltar relatos envolvendo os leprosos.

Não apenas isso. Considerando que o Messias deveria se envolver intensamente com a dor dos outros, sendo ele mesmo um homem de dores que sabe o que é padecer (Isaias 53:3), e por ser retratado como leproso em Isaias 53, isso nos deixa na expectativa de encontrar elementos do sacrifício de purificação dos leprosos no momento de sua crucificação sendo, portanto, minimamente razoável fazermos essa analogia, como foi demonstrado na seção 3 acima. Por fim, vale lembrar que a morte de Jesus guarda ainda um efeito de sentido que alcança diferentes conexões com a Escritura: Yom Kippur, sacrifício pascoal, o holocausto, dentre outras, afinal Nele se cumpre toda a lei e os profetas.

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