As Duas Bestas no Tanach e no Novo Testamento

O Apóstolo São João viu duas bestas agindo em conluio com o dragão para dominar todos os povos e perseguir as testemunhas de Jesus. O fato de serem duas bestas, e não apenas uma, costumava ter um efeito surpresa em mim. Ora, uma vez que em Daniel 7 nós lemos o relato de apenas uma besta, por qual razão aparecem duas no Apocalipse? Isso é o que estudaremos neste artigo e aproveitaremos para mostrar como as duas bestas são sinalizadas em outros livros das Escrituras.

1. As duas bestas no livro de Daniel

Comecemos por Daniel. As figuras do ‘rei do Norte’ (dinastia selêucida) e ‘rei do Sul’ (dinastia ptolemaica) estiveram em guerra entre si durante a maior parte de Daniel 11 (v.5-30). Já aprendemos no artigo Daniel 11:36 e Daniel 11:40, que o ‘rei do Sul’ reaparece em Daniel 11:36 (Muhamad e os califas liderando a expansão islâmica), mas depois se une ao ‘rei do Norte’ para acabar com a abominação desoladora em Daniel 11:40 (árabes e britânicos contra o Império Otomano). A ideia que o texto de Daniel nos passa é a do poder enorme que essas duas forças podem alcançar, quando unidas, ainda que por breve tempo. E, no tempo escatológico, conforme veremos a seguir, o livro de Apocalipse nos ensina que elas vão se unir novamente.

Quando a Bíblia menciona o ‘Norte’ se trata da origem de uma força poderosa e maligna, que traz a espada: o povo que vem do Norte é mais bélico, sanguinário e especialmente cruel contra o povo de Deus, como foi o caso dos babilônicos (Jer.1:14) e de Antíoco IV. Por outro lado, o ‘rei do Sul’ se caracteriza mais pela sua força retórica, religiosa, capaz de mudar o pensamento do seu tempo, o que ajuda a formar um povo cheio de convicções, que, quando convocado à guerra, se torna também muito temível, mas não no mesmo nível que as forças do norte. Muhamad, o domínio papal e as forças árabes receberam essa alcunha (confira nossos estudos sobre o livro de Daniel aqui no prophecylearning).

Tudo indica, portanto, que a primeira besta de Apocalipse 13, devido ao seu aspecto horrendo e comportamento altamente agressivo contra as testemunhas de Jesus, é representada no livro de Daniel pelo sentido cosmológico que atribuímos ao ‘rei do Norte’, ao passo que a segunda besta, em razão de sua retórica sofisticada que seduz os moradores da terra, é muito mais parecida com o ‘rei do Sul’.

2. As duas bestas no livro de Jó

Passemos agora para o livro de Jó, em que também nos é revelada a existência dessas duas bestas apocalípticas. A primeira delas está descrita em Jó 40:15-24 e em algumas traduções aparece como hipopótamo, mas o seu nome no original é Behemot e significa ‘grande boi’[1]. Possui as seguintes características: é um animal terrestre, pois a expressão “que eu criei contigo” (Jó 40:15) significa que Behemot foi criado juntamente com o homem, na terra seca[2]; sua força é interior, escondida dentro de seu corpo[3] (Jó 40:16); ele foi o primogênito dos animais terrestres, tal como consta em uma tradução rabínica, “ele é o primeiro do caminho de Deus”, referente ao curso da criação do mundo[4] (Jó 40:19); apenas Deus pode matá-lo, tal como, mais uma vez, consta na mesma tradução, “apenas seu Criador pode direcionar sua espada perto [dele]” (Jó 40:19); seu tamanho é colossal, pois precisa de montanhas para provê-lo de comida[5] (Jó 40:20); sua sede é tão grande que ele pode engolir um rio inteiro para saciá-la[6] (Jó 40:23); contudo, as criaturas não precisam temê-lo, pois não é um animal carnívoro[7] (Jó 40:20).

A segunda besta está descrita em Jó 41:1-34 e em algumas traduções aparece como ‘crocodilo’, mas o seu nome transliterado do original é Leviatã (Jó 41:1). Assim ele foi descrito: é um monstro que reside no mar[8]; é indomável, não podendo ser, de forma alguma, domesticado (Jó 41:5); se ousarmos enfrentá-lo, ele irá nos matar[9] (Jó 41:6); é ainda mais aterrorizante que Behemot, pois ninguém pode sequer despertá-lo e as pessoas morrem apenas de vê-lo (Jó 41:9); ao contrário dos outros animais, o seu pescoço é poderoso (Jó 41:14); todos os animais têm medo dele (Jó 41:17); ninguém, exceto Deus, é capaz de subjugá-lo, por ser um animal tão poderoso quanto invencível (Jó 41:18-21).

As descrições dessas duas bestas têm também um paralelo impressionante com aquelas vistas pelo Apóstolo São João. A besta de Apocalipse 13:1-2 surgiu do mar, perseguiu as testemunhas de Jesus e ninguém pôde vencê-la (Ap. 13:5), uma clara alusão a Leviatã. Já a besta de Apocalipse 13:11-15, chamada de falso profeta, surgiu da terra, não ataca diretamente as pessoas, tem sua força na religião, retórica e poder de sedução e conseguiu convencer os seus seguidores a fazerem a imagem da besta, mas o falso profeta, em si mesmo, é apresentado como um cordeiro, alguém manso, mas a sua voz de dragão revela que seu verdadeiro poder reside dentro dele – e isso, sem dúvida, encaixa-se perfeitamente com a descrição de Behemot.

3. As duas bestas em outros livros proféticos

Há ainda outras alusões no livro dos Profetas acerca dessas duas bestas. O termo empregado em todas as passagens citadas a seguir é tanniyn.  Em Isa. 51:9, o profeta faz alusão à vitória dos hebreus sobre Faraó e o monstro marinho (tanniyn). O próprio relato das nações gentílicas levantando-se contra Israel é descrito de forma figurada como o avanço inexorável de um enorme monstro marinho rugindo pavorosamente contra o povo de Deus (Isa. 17:12-14) e destruindo-os impiedosamente (Jer. 51:34). E, assim como consta no livro de Jó, apenas Deus consegue bloquear o avanço de Leviatã (Isa. 27:1). Isso nos sinaliza que a imagem de Leviatã é manifesta, na linguagem dos profetas, em nações e reis que se portam de forma semelhante às descrições do Leviatã encontradas no livro de Jó. A nação que se levanta contra Israel com o intuito de devorá-la é retratada como a manifestação desse monstro do mar.

Por outro lado, a besta é chamada por um nome quase igual no livro de Ezequiel (Eze. 29:3). Ele usa o termo tanniym (ao invés de tanniyn[10]). O estudo da etimologia da palavra claramente aponta que se trata de sinônimos, uma mera variação sem relevância aparente. No entanto, um estudo cuidadoso da passagem de Ezequiel 29:3-10 revela-nos que a variação pode ter sido intencional, pois as descrições dessa besta adquirem um sentido diferente dos outros trechos que mencionamos, em que tanniyn apontava para Leviatã. Nessa passagem, Ezequiel profetiza para Faraó quanto ao seu nada efetivo apoio aos judeus contra a Babilônia. Ele descreve Faraó com as seguintes características. Primeiro temos a autossuficiência e arrogância, por se deitar em estado de segurança em meio aos rios. Nesse quesito, segundo o Rabi Breuer[11], um sistema engenhoso de canais espalhou a generosidade do rio Nilo sobre áreas enormes que ele jamais alcançaria, e foi a construção desses canais que instigou Faraó a reclamar para si a grandiosidade: “eu tenho enriquecido a mim mesmo” (Eze. 29:3). Outro ponto diretamente ligado ao anterior é a negação da providência divina: ao dizer “o meu rio é meu e eu o fiz para mim mesmo” (Eze. 29:3), Faraó quis dizer que, ao contrário da terra de Israel, que depende das chuvas determinadas por Deus, os egípcios eram autossuficientes. Em nenhum momento, em Ezequiel 29, Faraó é descrito como uma potência bélica capaz de superar a Babilônia, ou ainda uma força opressora contra Israel, tal como seria se ele fosse realmente descrito como Leviatã. Diferentemente do monstro marinho, Faraó é apresentado como um animal autossuficiente, que só quer viver para si mesmo, farto de suas próprias riquezas, e não parece incomodar ninguém. Ele é um monstro poderoso, mas quieto, na defensiva. Em outro momento, Ezequiel é convocado a lamentar por Faraó (Eze. 32:2-10), mas o teor continua o mesmo, embora dessa vez ele use o termo tanniyn. Nesse trecho, Faraó se porta como um monstro turvando as águas, típico comportamento de quem quer apenas despistar seus perseguidores, portanto, mais uma vez, defensivo; ele vive no rio e, talvez o mais importante, Deus disse acerca dele: “Farei que muitos povos fiquem pasmados a teu respeito, e os seus reis tremam sobremaneira, quando eu brandir a minha espada ante o seu rosto” (Eze. 32:10). O ato de brandir a espada contra a besta aparece também quando da descrição de Behemot (Jó 40:19), conforme já pontuamos anteriormente. Acerca de Faraó, foi dito que ele era um leão (carnívoro), mas que depois passou a ser um tannîm, que, pelo cotexto, sinaliza-nos uma besta que não passa do nível de um herbívoro (Eze. 32:2); ele tem uma enorme corpulência (Eze. 32:5) e o seu sangue é capaz de regar a terra, sinalizando-nos água doce dentro dele, portanto, um animal que vive em pântano ou rio (Eze. 32:6).

Conclusão

Em resumo, Faraó e o Egito não são descritos por Ezequiel como uma nação que avança impiedosamente contra Israel, mas como um povo poderoso, porém pesado, parado, indiferente, que se ocupa apenas com sua própria necessidade conectando-se à figura de Behemot. Vejamos agora uma tabela de correspondência que nos mostra como as bestas nos são apresentadas em Apocalipse, Daniel, Jó e nos livros dos profetas.

Primeira BestaSegunda Besta
Anticristo (Ap. 13.1-7)Falso Profeta (Ap. 13:11-15)
Rei do Norte (Dn. 11)Rei do Sul (Dn. 11:36)
Leviatã (Jó 41)Behemot (Jó 40:15-24)
Nações opressoras que pisoteiam Israel (Isa. 17:12-14 e 27:1; Jer. 51:34)Faraó (Eze. 29 e 32)

[1] DAY, John. Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan. London: Sheffield, 2002, p.102.

[2] Comentário de Ibn Ezra. In: SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Job: the Writings with a commentary anthologized from the rabbinic writings. 1. ed. New York: Artscroll, 2020, p. 205 (The Writings).

[3] Comentário de Metzudos. In: SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Job: the Writings with a commentary anthologized from the rabbinic writings. 1. ed. New York: Artscroll, 2020, p. 205 (The Writings).

[4] A tradução rabínica da Artscroll consta: “He is the first of God’s way” (Jo. 40:19). A ideia de que ele é o primogênito foi esposada também por Metzudos (cf. SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Job: the Writings with a commentary anthologized from the rabbinic writings. 1. ed. New York: Artscroll, 2020, p. 205 (The Writings).

[5] Comentário de Ramban. In: SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Job: the Writings with a commentary anthologized from the rabbinic writings. 1. ed. New York: Artscroll, 2020, p. 205 (The Writings).

[6] A tradução rabínica da Artscroll consta: “he can gulp the Jordan into his mouth” (Jo. 40:23). (Cf. SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Job: the Writings with a commentary anthologized from the rabbinic writings. 1. ed. New York: Artscroll, 2020, p .205 (The Writings).

[7] Comentário de Ramban. In: SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Job: the Writings with a commentary anthologized from the rabbinic writings. 1. ed. New York: Artscroll, 2020, p. 205 (The Writings).

[8] SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Job: the Writings with a commentary anthologized from the rabbinic writings. 1. ed. New York: Artscroll, 2020, p. 205 (The Writings).

[9] Comentários de Ibn Ezra e Ramban. In: SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Job: the Writings with a commentary anthologized from the rabbinic writings. 1. ed. New York: Artscroll, 2020, p. 205 (The Writings).

[10] Número de referência Strong H8577. In: BÍBLIA ALMEIDA REVISTA E ATUALIZADA, COM NÚMEROS DE STRONG. Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.

[11] Cf. SCHERMAN, Rabbi Nosson; ZLOTOWITZ, Rabbi Meir (Ed.). Yechezkel: a new translation with a commentary anthologized from talmudic, midrashic and rabbinic sources. 2. ed. New York: Artscroll, 2020, p. 479 (Artscroll Tanach Series).

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