As Duas Testemunhas do Apocalipse e na Tradição Judaica

No livro de Apocalipse consta o relato de duas testemunhas que haveriam de agir por 1260 dias. Quem seriam essas testemunhas e qual seria a sua missão? Nesse artigo vamos verificar o que a tradição judaica tem a nos dizer acerca dessas mesmas duas testemunhas vistas por João e como isso nos dar suporte para compreendermos melhor a passagem de Ap. 11:3-6.

1. As Duas Testemunhas na Torá

O midrash Devarim Rabbah 3:16 nos brinda com a seguinte reflexão acerca das duas tábuas da lei dos dez mandamentos:

“Por que foram necessárias duas tábuas da lei? Não bastaria apenas uma? Os sábios dizem: isso é porque o Santo, bendito seja Ele, disse a Moisés: “essas tábuas testificam entre mim e meus filhos e, portanto, duas são requeridas, correspondente às duas testemunhas exigidas para testemunhar – adicionalmente as duas tábuas correspondem aos dois atendentes do casamento (um para o noivo, outro para a noiva), correspondem ao noivo e a noiva, correspondem ao céu e a terra, e correspondem a esse mundo e ao vindouro” (Devarim Rabbah 3:16)

As tábuas da lei são chamadas de tábuas do testemunho inúmeras vezes nas Escrituras (Ex. 31:18) porque elas testemunham os mandamentos que Deus exigiu que Israel guardasse. Os sábios ensinam que as tábuas são atendentes dos noivos porque, assim como os atendentes ajudam os noivos a se casarem, a lei de Deus é uma ferramenta que aproxima o noivo (Deus) de sua noiva (seu povo). Esse pensamento é reiterado pelo apóstolo Paulo, quando nos ensina que a lei é o mecanismo criado por Deus para nos trazer para Cristo: “de maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé” (Gal. 3:24).

As duas tábuas da lei (testemunho) seriam, portanto, a primeira menção a duas testemunhas que vimos na Bíblia e, nesse caso, sua função é conduzir o povo a Deus, o que já nos dá a primeira indicação do papel das duas testemunhas mencionadas no livro de Apocalipse, conforme veremos nas seções seguintes.

2. Moisés tem mérito de guiar o povo no drama escatológico

Ainda o mesmo texto midráshico nos ensina que Moisés voltará a guiar o povo de Israel juntamente com o profeta Elias:

“Depois de seus esforços infatigáveis em favor de Israel, Deus disse: “Moisés, eu juro pela sua vida, que assim como você deu a sua vida em favor do povo de Israel neste mundo, então assim será no futuro, quando eu trouxer Elias, o profeta, para anunciar o advento iminente do Messias, e vocês dois chegarão simultaneamente” (Devarim Rabbah 3:17)

Seguindo a mesma linha, o tratado de Sanhedrin 92a complementa informando que o líder que trata a comunidade com gentileza tem mérito de guiá-la no mundo vindouro. E esse foi o caso de Moises, que, de tanta gentileza, foi considerado como o homem mais manso de sua geração (Num. 12:3) e atingiu o mérito de guiar o povo de Israel no mundo vindouro, ou seja, para preparar o mundo momento antes da chegada do Messias.

3. A vinda de Elias

A crença judaica é praticamente unânime na crença de que o profeta Elias retornará no tempo do fim com a missão de preparar o caminho para o Messias. Ela se baseia especialmente em Malaquias 4:4-6:

“Lembrai-vos da Lei de Moisés, meu servo, a qual lhe prescrevi em Horebe para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos. 5 Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR; 6 ele converterá o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição” (Malaquias 4:4-6).

A partir desse verso, entendemos que Elias terá a missão de trazer conforto, conversão, preparando as pessoas para a chegada do Messias, o qual foi aludido no texto como o ‘grande e terrível dia do Senhor’. Por que então foi mencionado Moisés logo antes? O texto poderia dizer apenas “lembrai-vos da lei”, mas segundo Maharzu, a menção a Moisés e o acréscimo aparentemente desnecessário “meu servo” é para nos ensinar que Moisés e Elias estarão juntos. Essa interpretação ‘casa’ com a crença escrita no midrash, conforme já mostramos na seção anterior.

4. Uma interpretação simbólica

Uma abordagem bem interessante acerca da participação escatológica de Moises e Elias nos é dada pelo Rabino Meshech Chochmah. Ele nos dá uma interessante interpretação simbólica desse evento. Segundo ele, Moisés, o líder que transmitiu a Torá ao povo de Israel, representa o poder da Torá, enquanto Elias é o sucessor de Arão, que representa a hashgachah pratis, o cuidado especial de Deus pela segurança e bem-estar de Israel.

A ideia de que Israel é liberto por uma dupla já começa desde a narrativa do Exodo, quando Deus enviou dois redentores: “e lhes enviou Moisés, seu servo, e Arão, a quem escolhera, por meio dos quais fez, entre eles, os seus sinais e maravilhas na terra de Cam” (Salmos 105:26-27). E assim Israel pediu a Deus que fizesse o mesmo n futuro: “Envie-me outros dois como eles – envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo monte e aos teus tabernáculos”. (Salmos 43:3). O Rabino Meshech Chochmar ensina que a palavra ‘luz’ alude à providência que é descrita como a radiação do semblante de Deus (Num. 6:25). A ‘verdade’ é a Torá. Para sobreviver ao exílio, os judeus têm que ter essas duas forças redentoras: a providência e a Torá. Diante disso, temos então a seguinte relação:

Luz – Providência – Elias

Verdade – Torá – Moisés

A partir desse simbolismo temos que as duas testemunhas aludem ao poder da verdade (a Torá ou lei de Deus) e à luz (providência divina) que atuarão no povo de Deus de forma a prepará-los para a chegada do Messias. E, nesse sentido, Moisés e Elias, corporificam a verdade e a luz, respectivamente.

5. O texto de Apocalipse

Aprendemos que a tradição judaica nos ensina que realmente, no tempo do fim, Moisés e Elias vão se levantar com a missão de preparar o caminho para o Messias, agindo como atendentes do casamento entre o noivo (Jesus) e a noiva (Igreja). Com base nisso, já podemos ter uma leitura mais compreensiva de Apocalipse 11:3-6:

“Darei às minhas duas testemunhas que profetizem por mil duzentos e sessenta dias, vestidas de pano de saco. 4 São estas as duas oliveiras e os dois candeeiros que se acham em pé diante do Senhor da terra. 5 Se alguém pretende causar-lhes dano, sai fogo da sua boca e devora os inimigos [Elias]; sim, se alguém pretender causar-lhes dano, certamente, deve morrer. 6 Elas têm autoridade para fechar o céu [Elias], para que não chova durante os dias em que profetizarem. Têm autoridade também sobre as águas, para convertê-las em sangue [Moisés], bem como para ferir a terra com toda sorte de flagelos [Moisés], tantas vezes quantas quiserem”. (Apocalipse11:3-6)

O verso 4 menciona que as duas testemunhas seriam duas oliveiras e dois candeeiros. Isso alude à profecia de Zacarias. Vejamos:

“Que são aqueles dois raminhos de oliveira que estão junto aos dois tubos de ouro, que vertem de si azeite dourado? 13 Ele me respondeu: Não sabes que é isto? Eu disse: não, meu senhor. 14 Então, ele disse: São os dois ungidos, que assistem junto ao Senhor de toda a terra”. (Zacarias 4:12-14).

As oliveiras representam a realeza e o sacerdócio porque esses dois cargos eram os únicos que exigiam o óleo da unção para serem exercidos, embora na prática isso não parecia acontecer com frequência[1]. Então, as duas testemunhas estão ligadas a uma pessoa que exercerá a função política ao passo que a outra assumirá a função sacerdotal. Considerando todo o exposto, Moisés está ligado a figura política de liderança ao passo que Elias exerce a hashgachah pratis, o cuidado especial de Deus pela segurança e bem-estar de Israel, o que seria o trabalho típico de um sacerdote. Em outras palavras, Moisés será a testemunha que vai liderar politicamente o povo de Deus e vai lidar mais diretamente com o anticristo; ao passo que Elias vai cuidar de converter as pessoas, preparando seus corações (tal como aprendemos também na profecia de Malaquias).

Em resumo, o livro de Apocalipse serviu basicamente para confirmar a tradição, a Torá e os profetas e detalhar a ação dessas duas testemunhas. Elas sempre existiram na Torá e no livro dos profetas.

6. A controvérsia sobre Enoque

Não é incomum que muitos acreditem que uma das duas testemunhas seria Enoque. Apesar dessa conclusão não ter qualquer amparo na tradição judaica e nem Enoque corresponder a nenhuma das características das duas testemunhas, ou seja, nunca fez descer do fogo (Ap. 11:5) ou converteu água em sangue (Ap. 11:6), muitos insistem em acreditar que Enoque retornará com base na hipótese de que ele não provou da morte, mas foi arrebatado vivo aos céus, como parece sugerir a narrativa de Gêneses 5:23-24: “ todos os dias de Enoque foram trezentos e sessenta e cinco anos. Andou Enoque com Deus e já não era, porque Deus o tomou para si”. (Genesis 5:23-24)

O Bereshit Rabbah nos ensina que ‘andar com Deus’ tem o sentido de que Enoque poderia ser facilmente seduzido pelas tentações, e, por isso, Deus tinha que segurá-lo a todo instante. E quando a Bíblia diz ‘que Deus o tomou para si’ os sábios nos ensinam que tem o sentido de que ele simplesmente morreu, pois foi usada a palavra ‘laqach’, a qual é normalmente associada a uma morte prematura (o mesmo acontece em Ez.24:16, quando Deus ‘tomou’ a esposa de Ezequiel, onde a mesma palavra hebraica é utilizada). Esse tipo de morte é considerada uma bênção, pois a vida do homem é ceifada por Deus com o fito de poupar-lhe que veja o mal, e, no caso de Enoque, ele vivia em meio a geração pré-diluviana, que praticava toda sorte de maldade.

Ademais, o texto do Novo Testamento parece contradizer esse entendimento quando afirma: “Pela fé, Enoque foi trasladado para não ver a morte [thanatos]; não foi achado, porque Deus o trasladara. Pois, antes da sua trasladação, obteve testemunho de haver agradado a Deus” (Heb. 11:5). No entanto, se levarmos em conta uma interpretação sistemática entre o entendimento consolidado pela tradição e o texto de Hebreus, uma interpretação possível de Heb 11:5 seria que Enoque foi trasladado para não ver a segunda morte (thanatos igual ao que aparece em Ap. 2:11), ou seja, ele teria experimentado apenas a primeira morte e de forma prematura, pois, para não perder a alma do Seu servo, Deus o recolheu antes que ele caísse em pecado juntamente com os pervertidos daquela geração.


[1] No periodo do Segundo Templo o sumo-sacerdote não era mais consagrado por meio do óleo da unção. E, dentre os reis de Israel, apenas Davi, Salomão, Joás e Jeoacaz foram ungidos com óleo (cf. I Samuel 16:13, I Re. 1:39, II Re. 11:12, II Re. 23:30).

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